quinta-feira, 21 de julho de 2011

Camilo




Alguns ainda acreditam no acaso. Não sei que tipo de experiências tiveram na vida, mas as minhas não deixam dúvidas quanto a isso: pessoas não cruzam por acaso meu caminho, elas vêm com seu propósito, deixam suas marcas e geralmente uma preciosa lição. Mesmo quando estão apenas de passagem. Foi assim com Camilo...

Domingo, quase meio-dia. Eu retornava da igreja, com passos tranqüilos, ponderando as coisas que aprendera naquela manhã. Subitamente, fui trazida de minhas reflexões à realidade por um forte sentimento, que eu chamo de inspiração. Parei, olhei para todos os lados, e então, ao longe, avistei um homem sentado com a cabeça entre as mãos. Estávamos no Campus da Universidade Federal de Santa Maria, quase em frente ao Hospital Universitário, eu na calçada e ele sentado em um banco um pouco além, na direção do prédio.

Eu mentiria se dissesse que não sabia exatamente o que devia fazer. Eu sabia, mas relutei. Abordá-lo, por quê?! Um estranho, eu não saberia nem o que dizer quando me aproximasse, e além de tudo ainda poderia ser mal interpretada. Se estivesse visivelmente enfermo, tudo bem. Mas, desconsiderando uma tristeza ou aflição que se adivinhava, ele parecia bem. E se não estivesse, o hospital ficava logo em frente. Realmente não havia com que eu me preocupar e nenhum motivo para eu me desviar de meu caminho. Segui em frente.

Mas logo parei e, vencida, retrocedi. Não havia como lutar com algo tão claro em minha mente: eu precisava falar com aquele homem. Finalmente resoluta, embora sem saber de antemão o que deveria dizer ao abordá-lo, avancei em sua direção. As palavras saíram fáceis, como se eu as tivesse ensaiado:

- Posso ajudá-lo?

Mas, que surpresa, ao levantar sua cabeça para me dar uma resposta, ao invés de uma face masculina, contemplo o rosto sofrido de uma senhora!

- Sim, pode. Desde que a vi no começo da rua, desejei que  viesse falar comigo.

Essa senhora contou-me, então, o que a trazia àquele lugar: a doença do único filho. Há alguns anos lutando contra a leucemia, Camilo estava preso num leito de hospital. Desde o começo do tratamento, há dois anos, ele não saía de seu quarto, fragilizado pela doença. E o mais triste ela acrescentou nesse momento:

- Durante esse tempo, ele nunca recebeu visita, pois não somos daqui. Fico alguns dias com ele e tenho que retornar a meus afazeres em nossa cidade natal. Ele fica na companhia de médicos, enfermeiros, medicamentos, e uma esperança que nunca acaba. Mas amigos, não tem nenhum aqui.

A essa altura eu não sentia mais minhas pernas me prendendo ao chão, não tinha  consciência de meu próprio corpo, somente de meu coração que em batidas descompassadas gritava: você precisa ver esse menino!

Não foi por acaso. Minha vida teria tido uma lacuna jamais preenchida se por ela Camilo não tivesse passado. Eu o conheci naquele mesmo dia, algumas horas mais tarde. Para meu espanto, no leito onde eu esperava encontrar um menino triste, frágil e debilitado, vi um jovem cativo da enfermidade física, mas cuja vida da alma sobejava! E os reflexos dessa alma iluminada eu via em seus olhos mansos, serenos como o azul do céu na tarde mais ensolarada.  

Ficamos amigos no mesmo instante. Para ser mais exata, na verdade a impressão que eu tinha é de que éramos amigos de outros tempos... Conversar com ele era sempre uma alegria, ele tinha planos, tinha sonhos, tinha esperanças. Deveria acontecer o contrário, mas era eu quem saía de nossos encontros no hospital fortalecida, encorajada para enfrentar as dificuldades da vida. Havia naquele jovem de dezesseis anos uma perfeita combinação de força para viver e resignação com sua situação atual. Ou seja, ele não lutava contra os fatos, era manso, sereno diante deles. Não bradava aos céus “Por que comigo?! Por que eu?!”, como muitos nessas circunstâncias costumam e até estariam justificados em fazer.

Ele simplesmente vivia tanto quanto a enfermidade lhe permitia e tinha anseios impressionantemente tranqüilos de viver feliz com aquilo que a vida lhe trouxesse. Ao final de minhas visitas, eu frequentemente me perguntava se aquele menino aprisionado num leito não vivia de forma mais plena do que eu, que tinha a liberdade de ir e vir, mas lutava contra os acontecimentos, ao invés de desfrutar do aprendizado que eles poderiam me trazer.

Conforme a saúde de Camilo se estabilizava, ele podia deixar o hospital. Mas cheio de cuidados, permanecia num albergue para pessoas doentes, próximo ao socorro urgente, que às vezes se fazia necessário. Continuei a visitá-lo ali, onde conheci muitas outras pessoas batalhadoras como ele, que mesmo no auge de seus sofrimentos não perdiam a genuína alegria de viver. Levei outros visitantes comigo, e logo o menino que não era visitado tinha uma legião de bons amigos, todos encantados com seu jeito sereno de ser.

A legião de amigos em breve evoluiu para uma família cristã, quando Camilo tomou a decisão de filiar-se à igreja que eu freqüentava, tendo sido batizado por um querido amigo meu. Não pude participar fisicamente desse momento especial de sua vida, pois nessa época eu servia missão religiosa em outro estado de nosso país. Recebi, porém, a boa notícia, as cartas, e mesmo de longe partilhei desse momento feliz.

Embora tenhamos nos reencontrado quando concluí minha missão, nossos caminhos se separaram: mudei de cidade e ele também. Casei-me, tive filhos. Ele voltou para sua cidade natal, encontrou uma moça especial de quem ficou noivo com planos para casamento. Mas grandes amigos não se perdem para sempre! Voltamos, ambos, a Santa Maria, eu com minha família, por motivos profissionais; ele para fins de tratamento. Que alegria reencontrá-lo! Quase 10 anos depois, eu tinha agora um homem feito em minha frente, mas meus olhos continuavam a ver o menino que nunca perdeu a capacidade de transmitir paz e mansidão aos que o conheciam.

Certo dia, fomos surpreendidos com a notícia de que Camilo estava gravemente enfermo, internado no hospital para tratamento. Sua noiva veio de sua cidade  para acompanhá-lo nesse processo. Foram muitos dias de luta silenciosa, de esperança a cada dia renovada tanto por ele e sua mãe, quanto por sua dedicada noiva e por um vasto grupo de amigos que oravam fervorosamente por sua recuperação. Geovana, a noiva, impressionou a todos com sua firmeza nesse momento, deixando seus próprios interesses para trás para passar dias e noites ao lado do leito do jovem que ela amava. Segurou as lágrimas quando elas queriam jorrar, encontrando no serviço abnegado a força, e na sua fé em Jesus Cristo o alento para cuidar, amar e viver.  Sei que isso fez toda a diferença – para ele e para ela.

Chegou a hora dolorosa, e ele partiu. Dolorosa para nós, para sua mãe, para a tão dedicada Geovana. Quanto a ele, estou certa de que atravessou serenamente o véu que nos separa da outra vida, e com seus olhos mansos olhou para trás, viu que havia cumprido com excelência seu propósito nesta terra, e sorriu.



“Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.”  Mateus 11:29

Suzy Rhoden
Gravataí, 21 de julho de 2011




2 comentários:

  1. Muito obrigada amiga Suzy,pelas belas palavras pro Camillo, realmente ele era surpriendente, por isso que eu o amava tanto, ele me amava tambem.Ele tinha um carinho tão grande por mim. Ele foi um guerreuro um batalhador. Hoje fazem 2 anos que ele faleceu,mas sei que ele está melhor e com saude. Sempre vou ama-lo ele foi o primeiro amor da minha vida.
    Obrigada pela amor que você sentia por ele e por mim, obrigada por tudo que você e sua familia fizeram por mim, por todo o apoio. Por isso que amo muito vocês.

    Geovana Corrêa.

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  2. Querida Geovana,

    Que bom ter você por aqui, ler seu comentário. Sua história será sempre linda, vocês fizeram cada linha dela valer a pena. Foram ambos guerreiros, batalhadores, e seu exemplo fica para todos nós.

    Convidada a voltar sempre ao blog, és especial!

    Beijos.

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