domingo, 24 de julho de 2011

Dois ouvidos... para ouvir melhor!




Ontem me senti vivendo o conselho do sábio Mario Quintana, quando nos orienta a seguir sem olhar para o relógio, “jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas”.  Relatarei.

Um problema simples me levou a um consultório médico, e todos sabemos que nessas circunstâncias o melhor é deixar o relógio em casa e esquecer das horas mesmo, pois raras são as ocasiões em que somos atendidos de imediato, na hora agendada. Mas se alguém pensa que isso me incomoda, está enganado. Muito pelo contrário! Essas horas consideradas ociosas pelos escravos do relógio são normalmente um banquete para mim, que observo tudo profundamente. Não com olhos julgadores, mas buscadores de lições preciosas nas situações mais corriqueiras do dia. E ontem o “banquete” chegou junto comigo ao consultório.

Tratava-se de uma vovozinha acompanhada de sua filha, nos encontramos na porta de entrada. Elas sentaram de um lado, e eu na parte central dos bancos de espera, para ter uma visão mais ampla de tudo ao meu redor.  Mas deveria ter mesmo ido sentar ao lado da vovozinha, pois meus olhos não desgrudavam dela, especialmente depois da cena emocionante que presenciei: A senhora idosa, embora muito bem agasalhada, visivelmente sentia frio, e a filha então se aproximou para aquecê-la, tocando em suas pernas, em seus braços, fazendo cócegas, que provocaram na senhora uma gargalhada. A filha continuou a brincadeira, falando coisas carinhosas tal qual falamos aos bebês, até que as duas juntaram as testas e silenciosamente na voz disseram bem alto no gesto: Amo você, mamãe! Também amo você, minha filha! Observando a cena, o difícil era precisar quem era a mãe e quem era a filha naquele exato momento.

Mas o banquete não acabou! Eu poderia dizer que essa foi apenas a “entrada”, ainda viria o “prato principal”. A adorável velhinha puxou assunto comigo. Não demorou muito para perceber que não havia uma sequência perfeitamente lógica em todas as suas frases, ela repetia o mesmo fato várias vezes, por exemplo. Mas que isso importava se tudo que ela falava vinha acompanhado daquele sorriso encantado de criança?! Ouvi atentamente cada palavra. Comentava quando percebia que ela queria ouvir algo de mim, do contrário permitia que ela falasse e derramasse sobre mim sua transbordante doçura. Pois assim, doce, aquela criança envelhecida ou, mais provavelmente, aquela velhinha rejuvenescida até a fase da infância era o tempo todo.

A essa altura, a observadora aqui estava sendo observada e nem percebera: deparei-me com os olhos surpresos da filha, fitos em mim. Ela então sorriu e explicou: "Muitas vezes tenho visto minha mãe conversar com outras pessoas, ela gosta de falar. Mas conto nos dedos as vezes em que ela foi ouvida. Existe uma enorme diferença entre permitir que a pessoa fale para você e que ela fale  com você. E  você e ela realmente falaram uma com a outra!"

A filha estava impressionada. E eu estava impressionada pelo fato de ela estar impressionada com algo que deveria ser a atitude comum de qualquer pessoa com um mínimo de educação. Mas entendo, falta exatamente isso no mundo: pessoas com um mínimo de educação. Ou, trazendo para o aspecto físico, faltam pessoas com ouvidos. Bocas sobram para reclamar, profanar, difamar. Olhos também se multiplicam para  enxergar o defeito alheio, o erro, o grotesco – há quem use óculos para ver “melhor” nesse sentido! Mas cadê os ouvidos?!  Ocupados demais com os celulares, os fones musicais e afins... ocupados demais para ouvirem e compreenderem a voz da Sabedoria, ignorantes de que, se em teoria ela vem dos livros, na prática ela vem dos que viveram bastante para conhecê-la pessoalmente: os idosos.

Fico feliz por ter passado no teste. Não num teste que me aplicaram, mas um teste que eu mesma estabeleci. Um ideal de vida. Só não imaginava que o destino providenciaria uma testemunha ocular, que visse e comentasse o acontecido.

E o mais curioso é que o episódio relatado aconteceu justamente no consultório de um Otorrino, que procurei para fins de limpeza de ouvido... Constato que a limpeza se deu ainda antes de eu adentrar sua sala, enquanto eu me desfazia da “casca dourada e inútil das horas”.

Suzy Rhoden
Gravataí, 24 de julho de 2011

2 comentários:

  1. Que texto lindo, Suzy. Hoje,temos de pedir 'por favor, você pode me escutar?' As pessoas só querem falar, relatar o que é seu. Não estão preocupadas em escutar e em trocar. Não estão preocupadas em gentilezas, em suma, não estão nem aí para ouvir umas às outras. Acho que por isso os relacionamentos estão mais frios do que nunca. Está difícil até falar com nossos médicos; está defícil de perguntar qualquer coisa.

    Beijo pra você!
    Tais luso

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  2. Oi, Suzy.Li a sua crônica dois ouvidos para ouvir melhor.Maravilhoso texto. O tema traz à lembrança um antológico soneto de Bilac que procurarei transcrever de memória.
    VIA LACTEA.

    ORA, DIREIS, OUVIR ESTRELAS.. CERTO
    PERDESTE O SENSO.EU VOS DIREI, NO ENTANTO
    QUE PARA OUVÍ-LAS MUITA VEZ DESPERTO
    E ABRO AS JANELAS, PÁLIDO DE ESPANTO

    E CONVERSAMOS TODA NOITE, ENQUANTO
    A VIA LACTEA, COMO UM PÁLIO ABERTO
    CINTILA. E AO VIR DO SOL, SAUDOSO E EM PRATO
    INDA AS PROCURO PELO CÉU DESERTO.

    DIREIS AGORA-TRESLOUCADO AMIGO,
    QUE CONVERSAS COM ELAS, QUE SENTIDO
    TEM O QUE DIZEM QUANDO ESTAO CONTIGO.

    EU VOS DIREI; AMAI, PARA ENTENDÊ-LAS
    POIS SÓ QUEM AMA PODE TER OUVIDOS
    CAPAZ DE OUVIR E DE ENTENDER ESTRELAS.


    SUZI, VC. que tem uma alma gentil e sensivel, o que demonstra com suas crônicas inspiradas, certamente ama muito os seus semelhantes. Assim, além de ouvir a velhinha da crônica, está apta a ouvir e entender estrelas, de onde , certamente, retira tanta inspiração.
    Deus continue te abençoando e a nós, seus leitores e admiradores.

    Angelo, depois de um longo e tenebroso inverno.
    Assim, no dizer do poeta, tens ouvidos capaz de ouvir

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