terça-feira, 5 de julho de 2011

Nevascas


O rigor do inverno gaúcho neste ano tem-me levado em pensamentos a outro inverno de minha vida, quando participei da produção e adaptação teatral de uma peça chamada O Frio que Vem de Dentro. A peça explorava o egoísmo humano numa situação em que seis pessoas ficaram presas numa mesma caverna, devido a uma nevasca, cada personagem com um feixe de lenha. Naturalmente, se todos colaborassem, haveria uma fogueira capaz de aquecê-los até que chegasse o resgate. Mas estavam ocupados demais julgando uns aos outros, e tentando preservar seu feixe para suas necessidades individuais, de modo que logo morreram todos, congelados, cada qual abraçado em um pouco de lenha. A mensagem, então, era transmitida ao público através da equipe de resgate, que, diante dos corpos sem vida, exclamava: o frio que os matou não veio de fora, mas foi o frio que vem de dentro.

Enfrentamos nevascas todos os dias. O desemprego, o casamento em ruínas, a instabilidade financeira, a morte prematura de entes queridos, as escolhas inconseqüentes de um filho ou do cônjuge, a doença física ou psíquica nossa ou de pessoas queridas a nós, as tragédias que em um instante transformam em pó a construção de uma vida inteira. Elas, as nevascas, desabam sobre nós e nos encurralam. Sentimos medo, sentimos frio.  Olhamos ao redor e só vemos estranhos. A única conhecida parece ser mesmo a solidão, e é a ela que nos agarramos para agonizar e morrer.

Todos nós já vivemos momentos assim. Todos já fomos, algum dia, um dos seis personagens mencionados, presos subitamente numa caverna em momento de completa vulnerabilidade. Porém, se aqui estamos para ler ou para contar esta história, no meu caso, é porque sobrevivemos. O que fizemos para escapar da fúria de uma tempestade? Onde exatamente está o segredo de nossa vitória sobre o desespero?

Não fomos deixados para enfrentar as nevascas do dia-a-dia sem que cada um de nós recebesse pelo menos um feixe de lenha. Se analisarmos bem, por piores que tenham sido nossos desafios, nunca nos foi tirado tudo: restou a dignidade humana, e nela encontramos forças para renascer. O caráter, a integridade de uma pessoa, esses jamais lhe serão roubados, e farão toda a diferença quando houver a necessidade de um recomeço. Além disso, se suportamos bem nossas nevascas, foi porque alguém teve a idéia de unir os feixes de lenha – talvez nós próprios, talvez um amigo, ou até mesmo um dos “estranhos”, preso conosco na caverna. O fato é que a idéia era inteligente, reconhecemos isso e somamos, acrescentando nossa parte à brilhante fogueira que logo começou a se formar. Sim, éramos todos desconhecidos no princípio... Mas quem nunca participou daquelas dinâmicas de grupo, também chamadas de atividades quebra-gelo, na escola? O grupo pode variar bastante, as circunstâncias de interação também, mas a técnica é a mesma e sei por experiência que funciona. Quando realmente compreendemos a importância de se trabalhar em equipe, abrimos portas com sorrisos e seguimos em frente, conquistando colaboradores. A timidez e a autocomiseração são os primeiros gravetos a serem sacrificados para o bem-estar geral e o nosso em especial.

Com o passar dos anos, as nevascas da vida rendem boas histórias para serem contadas ao redor da lareira. Sempre deixam  sua lição. Por mais assustadoras que tenham sido, percebemos que elas enriquecem nossos invernos e que nos ensinam a dar mais valor à vida. Se não compreendemos isso ainda, talvez haja um motivo: estamos agora compartilhando estas histórias do passado, aquecidos pelas chamas aconchegantes da lareira de nossa casa... Ou finalmente alguém teve a brilhante idéia de juntar as lenhas, e está usando seus melhores argumentos para persuadir os demais, nesta caverna gelada?

Suzy Rhoden
Gravataí, 05 de julho de 2011

2 comentários:

  1. Suzy,
    excelente reflexão sobre o individualismo que atinge cada vez mais a nossa sociedade. Que possamos nos voltar para dentro de nós mesmos e nos esforçar para reavivar uma pequena brasa que ainda nos resta. Logo, poderemos ajudar a reacender a do nosso próximo e , assim, aquecidos, teremos capacidade de "passar" por essa nevasca.
    Abraço!
    Moises

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  2. Moises,
    Obrigada por seu sábio comentário!
    Você fez a síntese exata e perfeita da ideia do texto, é isso mesmo!
    Estou certa de que podemos, sim, enfrentar com sabedoria as "nevascas" de nossas vidas... e, se quisermos, não estaremos sós nesse processo.
    Abraço,
    Suzy

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