quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Infância Roubada



Interessante como um incidente qualquer atravessa nossos olhos e cria um texto em nossa mente, em questão de segundos!

Estávamos Arthur e eu, nesta manhã, aguardando nosso horário para receber da professora o parecer pedagógico trimestral. Outros pais esperavam do lado de fora da sala, acompanhados de suas crianças. A interatividade entre os pequenos não contagiou a nós, adultos, permanecendo cada qual mergulhado em seu universo particular -  certamente reclamando em pensamentos daquele tempo solicitado pela escola bem no meio do que seria uma manhã produtiva de trabalho.

Como a pedra lançada em águas profundas de devaneios foi o grito de meu filho recepcionando o colega preferido, que chegava na companhia do pai. Ainda estavam na rampa de acesso quando ecoou nas mentes assoberbadas dos pais o convite espontâneo e feliz de um menino ao outro para a brincadeira. E lá se foram os dois alegres a correr pelos corredores, brincar de múmia e létis, saltar degraus das escadas... Saltar o quê?!

Acabou a brincadeira. Mas não foi em virtude do perigo, afinal era um único degrau a ser saltado, tarefa fácil para meninos hábeis de 5 anos. Foi para que a roupa do coleguinha de meu filho não sujasse – aliás, a roupa antes impecável já apresentava indícios de contato com a escadaria, motivo pelo qual o menino foi repreendido pelo pai. E não apenas repreendido, mas sacudido, para que não restasse qualquer vestígio do pó do local.

Incentivada pelo pai resoluto a minha frente, ergui-me com o intuito de também censurar meu filho e orientá-lo para melhor escolha de brincadeiras.  Mas não pude fazê-lo. Meus olhos atravessaram instantaneamente os umbrais do tempo e vi a criança que fui um dia. Em minhas roupas não se percebia o pó da escadaria, mas os respingos do barro com o qual eu fabricava meus bolos de faz-de-conta. Saltar degraus? Não, minhas amigas e eu preferíamos a aventura de deslizar pelos barrancos da zona rural sentadas sobre papelões. Com freqüência o papelão se perdia pelo caminho, o que para nós tornava a brincadeira ainda mais engraçada.

Certamente as mães não viam a mesma graça na hora de lavar aquelas roupas. Mas agiam com mais tolerância às nossas brincadeiras do que as mães modernas. Não falo de outras mães, falo de mim mesma e de minha progenitora. Tive tempo e espaço para ser criança, explorei cada labirinto desse mundo encantado que é a infância. Buscando nas recordações, encontro muitas aventuras e poucas interferências. Talvez porque, naqueles tempos, fosse mais cômodo aos adultos que fôssemos mesmo crianças e não nos metêssemos em seus assuntos. Hoje fazemos o contrário, além de interferir a todo instante em suas brincadeiras, exigimos de nossos pequenos que sejam adultos em miniatura. Para quê?!

Acredito que fazemos isso sem nem perceber. Como o pai que inspirou esta crônica. No esforço de poupar estragos na roupa, criou um rombo no mundo da imaginação de seu filho e de seu amiguinho. Como se eles fossem pescados subitamente de seu oceano de faz-de-conta e largados, sem maiores explicações, no mundo chato e regrado dos adultos. Será que lugar de criança é mesmo em ‘terra firme’? Se não é, por que cometemos a atrocidade de roubá-los de seu mundo de sonhos tão logo começam a sonhar? Depois questionamos o comportamento de nossos adolescentes, passivos, apáticos diante da TV ou do computador. Não seria de estranhar uma resposta do tipo: “Qual o problema, papai? Ficar sentado não suja e nem estraga a roupa!”

O fim da história dos meninos, nesta manhã, é coisa previsível: sentados, contando piadas um para o outro. Mas não gargalhavam ao final – quem faz isso é adulto – mal terminavam uma, emendavam a seguinte, sem nem entender direito aquelas coisas decoradas. Os pezinhos inquietos batendo no chão, os dedos tamborilando a cadeira que os prendia. Queriam correr, brincar, pular, gritar, viver.

E eu pensando com meus botões: o que há de tão errado em ser criança quando se é criança?! Os adultos crescem e desaprendem a viver. E querem obrigar as crianças a abdicar de seu direito também.

Suzy Rhoden
Gravataí, 24 de agosto de 2011


5 comentários:

  1. Suzy, você me remeteu a um tempo bom, onde as pessoas eram mais sociáveis, as crianças brincavam, verdadeiramente, sem medo! sujar a roupa não era nenhum problema e olhe que nem a máquina de lavar era comum naquela época,no entanto, o que os pais desejavam era ver os filhos com saúde, correndo para todo lado.
    Gosto muito da forma como você escreve, faz a gente ir até o fim do texto sem vontade de parar.

    Beijos

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  2. Eu brinquei muito!!! E por ser portadora de baixa visão sempre imagina como eram minhas roupas, pois estava sempre a cair e me esbarrar por todos os cantos, mas jamais me robaram a infância.
    este pai, assim, que impediu o filho de brincar por conta de se manter limpo, teria sérios problemas comigo que sempre estive sujinha na minha infância tão cheia de sonhos e brincadeiras.
    Será que ele conhece OMO????
    Beijinhos, amiga

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  3. Oi, Suzy, ah, amiga... se o problema ficasse em piadas não seria nada mal. O pior está quando criancinhas de 4 e 5 anos ficam defronte da telinha de pijama! E ali passam horas pensando que têm muitos amigos e que na real estão se divertindo um monte com aqueles jogos destrutivos, cheios de safadeza e violência cometidos por ingênuos bonequinhos. Não se faz mais crianças como antigamente... Esta frase é tão 'batida' que muitos dizem sem saber o que realmente significa.
    Hoje a boa criança deve se manter engomadinha e saber muito sobre informática! Aí sim são inteligentes; têm um belo futuro pela frente por saberem desvendar as coisas dos adultos. São adultos em miniatura, como você bem falou. Não existem crianças; existem adultos tentando educar não sei o quê.
    Estaremos aqui, ainda, pra ver o tamanho do estrago...

    Um beijo e meu carinho.
    Tais luso

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  4. Suzy!!

    Quanta saudades do nosso tempo de criança, quando brincávamos sem interferência de adultos...nos campos, arbustos, barros e barrancos como vc mesmo disse.
    Saudades do capão dos nossos avós, onde corria um riozinho e passavámos uma pinguela, e muitas vezes caíamos na água somente para brincar...saudades, eternas saudades do bom tempo de criança.
    bjs

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  5. Queridas!

    Que bom ter vocês aqui! Obrigada pelo carinho de cada uma...

    De fato, é uma delícia recordar nossa infância sujinha e cheia de sonhos! As brincadeiras, as artes, até o riacho e as pinguelas, não é prima? rsrsrs

    Hoje caminhamos para um estrago, como Tais, querida, apontou. de fato. Mas ainda assim sou otimista, sabiam? Afinal, estamos nós aqui lutando pelo que realmente importa, plantando sementes e ganhando força na união de ideais.

    Obrigada sempre pelas visitas!

    Beijinhos

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