quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Tradições Familiares




Um fim de semana em família foi o suficiente para relembrar meus planos de adolescente: casar-me, ter muitos filhos, e uma mesa enorme sem lugares vagos, todos ocupados por minha progênie nas datas festivas de Páscoa e Natal. Eu podia ouvir, em meus sonhos, o burburinho dos adultos atualizando as conversas, enquanto as crianças, inquietas, cutucavam disfarçadamente umas às outras por baixo da mesa.

Cresci, casei e tratei logo de garantir a posteridade. Mas o sonho otimista da juventude cedeu lugar ao realismo dos tempos modernos, no que se refere à conversa animada em volta da mesa: tenho a impressão de que verei notebooks, smart phones, iphones, e todo tipo de lançamento eletrônico em ação, fazendo imperar o silêncio no mundo real para que o virtual seja apreciado de forma mais plena. Nem mesmo as inocentes provocações infantis eu penso que verei à mesa, estando cada criança ocupada demais com seu jogo eletrônico para se importar com a presença do primo a sua frente.

Nada tenho contra a tecnologia, sinceramente. Ela veio em nosso benefício. Veio para facilitar nosso acesso aos mais diferentes e distantes lugares, e isso é ótimo. Minha cisma é com nosso entusiasmo excessivo com os eletrônicos, numa espécie de substituição daquilo que é real e presencial. Se soubéssemos conviver em perfeito equilíbrio, esta crônica não existiria. Mas cedemos facilmente aos estímulos virtuais, ao ponto de dispensarmos a conversa face a face com um familiar para nos atermos a um bate-papo com um desconhecido via internet. Esse exagero é que me incomoda e que vem como um ‘balde de água fria’ nos meus sonhos de adolescente.

Estive com minha família no fim de semana. Não nos vemos com freqüência devido à distância entre as cidades e principalmente devido à distância que a sobrecarga de compromissos, de uns e outros, impõe aos relacionamentos familiares. Percebi o quanto corríamos de um lugar para o outro, planejando ver muitas pessoas queridas e fazer muitas coisas divertidas em nossa cidade natal. Um compromisso atropelava o outro, de modo que estávamos na metade de uma atividade já pensando em como executaríamos a seguinte. E assim escorreram pelos vãos de nossos dedos nossas horas de férias, e voltamos para casa com a sensação de termos aproveitado muito pouco. Por que isso? Por que corremos tanto? Por que lutamos contra o tempo ao invés de andar no passo tranqüilo e resoluto dele, se já sabemos que esse é o único meio de fazermos e deixarmos história?

Antigamente, quando recebíamos os parentes, aqueles eram dias de descanso e de férias para todos: família que visitava e família visitada. Um único fim de semana se prolongava e parecia durar uma semana. Eram dias especiais, importantes, estávamos ali uns para os outros. Nossas atividades eram coletivas, interagíamos – o que é bem diferente de um grande número de indivíduos da mesma família desempenhando a mesma atividade de forma isolada. Se essas coisas não acontecem em nossos dias é porque algo se perdeu pelo caminho, e esse ‘algo’ é justamente o elo entre famílias e gerações: as tradições familiares.

Não se trata de coisa extraordinária ou extravagante. As tradições familiares são normalmente as atividades mais simples, desde que sejam transmitidas de pai para filho e perpetuadas pela sua riqueza simbólica. Pode ser o acampamento em família num fim de semana específico. Ou o desfile a cavalo na Semana Farroupilha, celebração tão importante para os gaúchos. A leitura das historinhas para os filhos na hora de dormir, ou o teatro de fantoches. Não importa. Cada família escolhe  sua atividade, de acordo com seus propósitos, e apenas tem o trabalho de repeti-la regularmente para que ela se torne uma tradição. Acredito no poder de união entre membros de uma família que essas tradições propiciam.

Fiz uma tentativa, há alguns anos, de reunir mensalmente a família de meu esposo para encontros programados, com atividades variadas. O projeto foi um sucesso. Até o segundo mês. Quando se tornou necessário real interesse de nossa parte para encaixar os horários disponíveis de cada família, o projeto naufragou. Ninguém parecia disposto a sacrificar os seus planos, ou a priorizar uma tradição familiar na agenda lotada. Infelizmente não dispomos de tempo para ‘gastar’ ao lado daqueles que dizemos que são os nossos ‘entes queridos’. Entes sim... mas queridos até que ponto?

Preocupados com isso, meu marido e eu estabelecemos recentemente em nossa família uma nova tradição: semanalmente realizamos uma espécie de ‘amigo secreto’, que na verdade não é secreto, mas que nos dá a tarefa de cuidar de maneira especial de um membro de nossa família durante os próximos sete dias. As crianças adoram. Percebemos o reflexo em suas ações, pois se esforçam por serem gentis em especial com aquele de quem devem cuidar. As brigas entre eles diminuíram.  Eles sentem-se responsáveis uns pelos outros e esforçam-se por servir da melhor maneira, sendo bondosos e carinhosos, ou então obedientes quando sua tarefa é cuidar de um de nós, seus pais. Sentimos a diferença que essa tradição tem feito em nosso dia-a-dia. A avaliação da semana é realizada numa reunião que chamamos de Noite Familiar. Então somos todos elogiados ou, se falhamos em algo, incentivados a melhorar nossos esforços na semana seguinte, quando teremos novas designações. E assim vamos aprendendo mais uns sobre os outros e desenvolvendo o hábito de servir, de cuidar e de amar.

De volta aos meus planos de adolescente, tenho motivos para sonhar com a mesa enorme repleta de descendentes, todos alegres e interativos. Todos entes realmente queridos. Posso vê-los, posso ouvir seu burburinho agora mesmo...

Suzy Rhoden
Gravataí, 10 de agosto de 2011

9 comentários:

  1. Como é lindo recordar tudo isso,não?Adorei!beijos,chica

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  2. Suzi, gostei muito desta sua crônica e me acendi lendo sobre os tablets, smarts phones, iphones... E penso que hoje existe uma imensa solidão justamente por causa dos computadores e assemelhados. Ninguém fala mais com ninguém a não ser pelas redes sociais e jogando não sei o quê. Todos estamos mais solitários. A virtualidade é ótima, conversamos sem brigas, escrevemos e todos somos muito mais lidos se escrevessemos um livro, mas estamos pagando o preço. E isso só vai... Cada vez inventarão 'coisas' para ficarmos clicando com dois dedinhos e olhos de águia. O que você está fazendo, é lutando para que seus filhos tenham a nossa infância, muito mais saudável, sem dúvidas.Mesmo que fosse para pegar caronas... hkkk.

    Um beijo pra você!
    Tais Luso

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  3. Tais, você captou muito bem a essência do texto.Estou remando contra a maré, com meu barquinho solitário... Não posso aceitar que tudo que vem, que é novo e moderno, é melhor e capaz de substituir um hábito antigo. Insisto nas tradições familiares, não quero uma descendência genial na informática mas fria e solitária. Vou continuar remando contra os ventos, tentando oportunizar uma vivência saudável para meus filhos, na medida do possível.
    Mas eles que não me falem em pegar carona... kkkkkkkk Isso é coisa de outros tempos mesmo!!! kkkkk

    Beijão

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  4. Oi Suzi!

    Em primeiro lugar quero agradecê-la pela sua visita e pelo seu comentário tão gratificante! Senti-me verdadeiramente feliz e adorei conhecê-la melhor através dos seus textos.
    Tudo que li aqui são raciocínios que refletem a natureza de uma pessoa sensível e delicada.

    Quanto a essa crônica, faço minha as palavras da Taís: existe uma imensa solidão nesses tempos modernos da tecnologia do mundo virtual... Tenho visto isso por toda parte. Eu mesma estava trilhando por esse caminho, sem que me desse conta. Mudei, reformulei, e ainda estou buscando o equilíbrio sem abrir mão do que tenho disponível. Estou agora estabelecendo prioridades na minha vida, e nada pode substituir o que é insubstituível: o convívio real com as pessoas... Principalmente àqueles a quem tanto amamos.

    Eu, igual a vc, não sou contra os avanços da ciência, isso é próprio do ser humano que foi dotado de inteligência evolutiva. Mas tem a questão da imperfeição humana: o que poderia ser bom, muito bom, logo mostra seu ‘efeito colateral’ que o homem nunca soube contornar. É o que costumo dizer sempre, a humanidade à parte de uma sabedoria maior cria coisas geniais, grandiosas, mas que trazem no pacote problemas maiores ainda. Talvez um dia saberemos como evoluir sem causar danos a nós mesmos e ao planeta que é o nosso lar.

    Um mega parabéns pra vc pela sua visão no quesito ‘família’, adorei sua explanação sobre esse assunto! Reflete em tudo que penso.

    Um beijo enorme e todo meu carinho.
    Sueli Gallacci

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  5. Olá Suzi, nos tempos de agora é possível perceber que as redes sociais aproximam os que estão longe, no entanto, distanciam cada vez mais os que estão perto. Os jogos eletrônicos tomaram a vez das brincadeiras em grupo e conversar entre família está cada dia mais raro. Gostei muito da sua nova tradição, achei maravilhosa a ideia, uma linda forma de agregar e valorizar as pessoas da família.

    Beijos

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  6. Suzi! Adorei a idéia de cada membro da família cuidar do outro, foi fantástica. Irá intensificar ainda mais os laços entre eles.
    Adono teus textos. Tanto que estou em Paris lendo eles pelo iphone... Vendo por outro lado, as redes sociais nos reaproximam das pessoas que amamos e que o destino levou pra longe. Foi o nosso caso amiga.
    Bjs
    Claudia

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  7. Sueli, que bom receber tua visita aqui!

    Espero que volte mais vezes,

    Beijo!

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  8. Chica e Néia, adoro ver vocês sempre por aqui... já são do coração!!!

    Beijos!

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  9. Claudia, querida!

    Obrigada por seu carinho, mesmo durante uma viagem especial! Fico feliz em saber que meus textos te acompanharam, me alegra saber que eles te são úteis de alguma maneira.

    E, sim, existe o lado positivo, maravilhoso da tecnologia: aqui estamos, em contato novamente!

    Agindo com sabedoria, não teremos grandes problemas e a evolução virá a nosso favor: é realmente uma questão de escolha!

    Volte sempre!!! Beijos.

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