domingo, 25 de março de 2012

Culpa



Esther fechou a porta atrás de si e arrastou-se até o sofá. Eram visíveis os sinais de cansaço, trabalhara mais uma vez até a exaustão. As últimas gotas de energia, guardara pra gastar com os filhos assim que chegasse em casa. Mas ambos dormiam, informou a babá, quando se cruzaram na garagem. Era isso o que mais doía: deixá-los dormindo de manhã e, à noite, ao retornar,  encontrá-los novamente na cama. Claro que fazia o melhor que podia, ligava várias vezes ao dia. Mas tinha certeza de que isso não era o suficiente, não compensava a falta que ela, na condição de mãe, fazia em seu próprio lar.

Com esforço, tirou os sapatos, sentindo os pés doloridos. A função executiva exigia saltos sempre altos. Em outros tempos, reclamava por não poder usá-los, já que sapatilhas pareciam a opção mais conveniente a uma atarefada mãe de duas crianças pequenas. Sentia-se a gata borralheira, sem vaidade, sempre às voltas com os meninos, participando de suas brincadeiras. Raramente estava maquiada, nem brincos tinha condições de usar, pois Nícolas não resistia àquelas argolas compridas. Diante desse pensamento, um sorriso estampou seus lábios: era uma gata borralheira feliz... mas não tinha consciência disso na época. Reclamava todos os dias da rotina que lhe cabia. Agora estava linda, impecavelmente vestida e maquiada. Cada fio de cabelo no seu devido lugar. E, claro, as argolas e os acessórios cuidadosamente escolhidos completavam seu elegante visual. Mas faltava algo... o sorriso, antes espontâneo diante das peripécias de seus filhos, agora era superficial, forjado para os clientes. Linda por fora, mas vazia por dentro.

Balançou a cabeça, como para espantar maus pensamentos, e, recobrando as forças, andou até o quarto dos filhos. Abriu lentamente a porta e parou por um instante a observá-los em seu sono tranquilo. Via os sinais do tempo no espaço que Pietro ocupava na cama: estava tão grande, tão alto! Parecia bem maior do que os 6 anos que a certidão de nascimento registrava. Movida pela saudade, aproximou-se e, encostando a testa na dele,  fez silenciosa briga de narizes, brincadeira que sempre arrancara do garoto muitas gargalhadas. Mas dessa vez, ao invés de riso, houve silêncio, remorso e lágrimas.

Com um aperto no coração, andou até a cama de Nícolas, seu caçulinha. Mesmo dormindo, não negava a adrenalina escondida debaixo dos cabelos de anjinho, loiros e cacheadinhos. Sabia que quando acordasse, seria num salto, e já sairia aprontando pela casa afora. Sorriu com a lembrança, mas logo sua face anuviou-se: não conseguia lembrar a última manhã em que o tinha visto despertar! Uma semana talvez, ou mais... Angustiada, aninhou-se ao lado dele na cama e num impulso apertou-o contra o peito, como se com esse gesto pudesse reter o tempo que passava e congelar as lembranças queridas. Nícolas reagiu ao carinho, empurrando-a pra fora da cama com os pequenos bracinhos. Não estava mais acostumado aos mimos noturnos, ao afago que em outros tempos a mãe lhe devotava. Não precisava mais dela.

Esther deslizou para o chão, e deixou-se estar ali, perdida entre lágrimas e emoções, abraçada aos próprios joelhos. Não entendia porque estava tão triste e com a enorme sensação de vazio dentro do peito. Lutara muito pra retomar a carreira depois do nascimento dos filhos. Recebia olhares de admiração por todos os lugares onde passava, servia de exemplo pra outras mães, que queriam ser como ela: sair das clausuras da maternidade diretamente para o mundo dos negócios. Ela era inspiração para outras, era o modelo que deu certo da versão moderna de ser mulher.

Mas por dentro, quem era ela? Uma mãe que convivia com a culpa. A culpa de todos os dias sair bem cedo de casa, sem a chance de uma refeição com os filhos. Lógico que tudo que ela fazia era por eles, para garantir seu futuro, a faculdade, o intercâmbio, e tudo que o dinheiro pudesse comprar. Não lhes faltaria nada, nada! Isso ela disse para as amigas quando, após insistentes reclamações, convenceu o marido de que sua renda seria importante no lar. Ele gostava da ideia de tê-la em casa, perto dos filhos, já que ele próprio passava dias distante da família, em viagens de negócios. Mas ela insistiu, queria auxiliar nas despesas, queria sentir-se parte do sustento de seus filhos, exigia a condição de igualdade. Será? Não podia mentir pra si mesma, sabia que muito do que havia feito fora por vaidade. Os elogios a sua capacidade foram sementes que germinaram no coração, ela almejou mais do que tudo o sucesso, a realização profissional. Conseguiu, era de fato talentosa. Trocou a vida de mãe em tempo integral pela vida de mulher moderna, independente, pró-ativa. Só não sabia que uma conquista exigiria o sacrifício absoluto da outra.

No começo, tudo deu muito certo, a vida transcorria em perfeito equilíbrio: Esther administrava bem as horas de executiva, intercalando-as com as tarefas de mãe. Enfrentava o trânsito, mas conseguia almoçar com os filhos e levar Pietro pessoalmente pra escola. Porém, com o crescimento profissional, vieram os almoços com o chefe ou então com clientes, e os compromissos sempre urgentes além do horário. Viu-se obrigada a transferir suas responsabilidades no lar para a empregada e abraçou de vez a causa da empresa.

Seus filhos tinham brinquedos caros, tinham livros, excelente escola. Se não tinham tudo que o dinheiro podia comprar, era apenas uma questão de tempo. Ela podia oferecer exatamente aquilo a que se propôs e que, alguns anos atrás, ela chamou de “o melhor para meus filhos”. Mas seria mesmo o melhor oferecer sua ausência diária? Oferecer seus boa-noites tardios e suas lágrimas arrependidas? De repente, Esther deu-se conta de que pagava alguém para viver o privilégio que lhe cabia por direito: desfrutar diariamente da companhia dos  filhos, vê-los crescer e amadurecer, participar de suas descobertas! Não teria ideia do dia em que caiu o primeiro dentinho de Pietro, se não fossem os registros de Malvina. Nem saberia que Nícolas já era capaz de escrever sozinho o próprio nome. Desconcertada, chegou à conclusão de que era apenas coadjuvante na vida de suas crianças: a personagem principal, que recebia os melhores sorrisos, que confortava nos momentos de dor, que brincava de esconde-esconde ou rolava com eles na grama, era a babá!

 Se na vida profissional havia alcançado êxito, o que sobrara de sua vida pessoal? Deixaria patrimônios aos herdeiros, e nenhuma tarde sequer correndo com eles no parque. Compareceria às mais importantes reuniões de negócios, mas sequer saberia o assunto abordado na última reunião da escola. Influenciaria gerações futuras com sua visão empreendora, enquanto seus filhos cresceriam de acordo com os valores das professoras ou da empregada. “Que troca absurda foi essa que fiz?!”, gritou para si mesma, inconformada.

Só então olhou para o relógio e percebeu que era tarde, muito tarde.

Ou não. Sorriu, enquanto tirava as argolas.

‎"A meu ver, as mulheres de hoje, de modo geral, bem fariam em avaliar seus interesses e as atividades nas quais estão envolvidas e, em seguida, tomar medidas para simplificar a vida, colocando as coisas de maior importância em primeiro lugar, dando ênfase às coisas cuja recompensa será maior e mais duradoura, e livrando-se das atividades menos recompensadoras"


Belle S. Spafford

Suzy Rhoden

quarta-feira, 14 de março de 2012

Falhas e fracassos: a vida continua?




Na condição de humanos, estamos sujeitos a falhas e fracassos ao longo da vida. Sabemos muito bem disso e até teorizamos a respeito, ensinando nossos amigos a serem positivos nessas circunstâncias, a verem o outro lado da desgraça. Mas quando acontece conosco, sinceramente, a última coisa que queremos ouvir são as teorias de que “há um propósito pra tudo” e de que “poderia acontecer com qualquer um”. Afinal, do amanhã eu dou conta, eu me supero, eu me refaço: o problema é o agora!

Vivi algo dessa natureza nesta semana. Experimentei uma falha justamente onde eu não poderia falhar. Fracassei num ponto específico que não aceitava o fracasso. Não estou falando subjetivamente, mas de algo prático e de certo ponto até simples. Falhei contudo. Só uma pessoa em um milhão poderia ter cometido a mesma falha, e fui eu a premiada. Semana que vem tudo estará bem, já sei disso. Mas como estou hoje, neste momento?

Preciso confessar o que todos já sabem: sinto-me destruída emocionalmente. Pois para onde quer que olhe, revejo o erro tolo cometido – até meus filhos pequenos teriam sido mais prudentes!  Mas fatos são fatos, e negá-los é algo que não faço.  Assumo, arco com o prejuízo – nesse caso, um enorme prejuízo emocional.

Antes que alguém pense “coitada, em que encrenca terá se metido!”, informo que não foi nada de grandes proporções, a não ser para minha personalidade perfeccionista. Os semelhantes a mim sabem do que estou falando: exigimos o melhor de nós o tempo todo, e quando percebemos exposta justamente a pior parte, é como se sumisse o chão debaixo de nossos pés. É algo pessoal, que nada tem a ver com a opinião dos outros. É uma cobrança interna que não para de avivar o débito, ainda que todos em volta já o tenham esquecido.

E, como todo carrasco, a consciência cobradora é impiedosa, fazendo-me lembrar das falhas passadas: lembra-te da reprovação no primeiro exame  para obter a CNH? Como desta vez, foi um erro tolo, num ponto que eu dominava. Respondo para a consciência: lembro, sim, e lembro inclusive que no segundo exame fui perfeita, concluindo a prova sem um ponto negativo sequer. A consciência não desiste e acusa: e aquele terceiro lugar no concurso que você mais queria, quando você deveria ter sido a primeira colocada para conquistar a vaga? E eu replico: obtive incrivelmente um terceiro lugar, tendo estudado por apenas um mês durante as madrugadas, sem tempo ou dinheiro para investimento em cursinhos, já que me ocupava com meus filhos e minha profissão na época, e ainda assim consegui ser a terceira melhor entre tantos!

Seguem os ataques da consciência, seguidos de minha resposta justa para cada um deles. Assumo o fracasso momentâneo, mas não aceito a condição de derrotada. Não permito que minha autoestima seja atingida e ferida – não de maneira definitiva! O abalo emocional é indiscutível e natural. Mas quem disse que ele é de todo ruim? Afinal, vejo nessas situações uma oportunidade de autoavaliação para, talvez, uma mudança de percurso. Ou quem sabe para motivação e empenho ainda maior naquele ponto em que se deu o erro. Exemplos não me faltam para citar: minha professora de Inglês, que até os 25 anos tinha aversão ao idioma, mas decidiu vencer a si mesma e se tornou uma das melhores profissionais que já conheci na área; meu instrutor de tiro, que não teve um acerto sequer ao alvo em sua primeira competição; e vários outros, incluindo o célebre Steve Jobs, que conseguiu ser demitido da  empresa que fundou, para então redirecionar sua vida e voltar a mesma empresa para levá-la ao sucesso internacional.

Finalmente, posso afirmar que temos no fracasso o melhor antídoto contra o orgulho e a arrogância. O que seria de nós se nunca errássemos, se jamais falhássemos? Haveria empatia em relação ao erro do outro? Passaríamos a vida nos sentindo superiores, incapazes de ser solidários com alguém que falhou, impiedosos, e certamente seríamos pessoas de poucos amigos. Pois é na dificuldade que as amizades se confirmam, que os laços se estreitam.

No fim das contas, fracassar por um momento não é tão prejudicial assim. Mas tornar-se um fracassado por causa de um erro isolado na vida é estupidez. Não precisamos disso, afirmo categoricamente. Evitar uma crise por vezes é impossível, é algo que foge ao nosso controle. Mas gerenciá-la é uma questão de inteligência, é o que realmente separa os bons dos melhores: os bons nunca erram; os melhores convertem o erro de um dia no sucesso de uma vida.

Suzy Rhoden

domingo, 4 de março de 2012

Cavalheirismo: alguém viu por aí?



As facilitações do mundo moderno nos privam, muitas vezes, de experiências significativas. Quem, por exemplo, trocaria o conforto de seu carro, equipado com ar condicionado, entre outros tantos benefícios, pelos sacolejantes coletivos urbanos? Nem eu. Mas penso que se vivêssemos uma única vez no mês essa experiência, teríamos outra visão de mundo e talvez até mudássemos atitudes diárias. No mínimo, daríamos mais atenção àquilo que é nosso dever, como pais, de transmitir a nossos filhos em casa.

Fiz isso recentemente, troquei o carro pelo coletivo. Estava a caminho de um curso, pensando no quanto seria instruída ao longo daquele dia. Só não imaginava que as maiores lições viriam antes do ingresso na sala de aula, e que teriam um impacto grandioso em minha vida.

Tudo começou na parada de ônibus – desses intermunicipais, que circulam pela região metropolitana. Juntamente comigo, havia uma fila de adolescentes, provavelmente a caminho da escola. Eu disse ‘uma fila’? Não, sonho meu. Não se sabe o que é isso em paradas de ônibus. Ao invés de fila e organização, havia uma manada de elefantes correndo para seu objetivo – os poucos assentos ainda disponíveis – dispostos a atropelar quem quer que cruzasse seu caminho. Como eu não tinha planos de terminar pisoteada já na primeira hora da manhã, afastei-me e deixei que os jovens levassem a cabo seu intento.

Mas eis que surge uma luz no fim do túnel: um rapaz se deixou ficar para trás do grupo, até que sobramos ele e eu. De maneira alguma eu seria um empecilho para ele, não me adiantei. Então, para minha surpresa, ouvi a frase: a senhora primeiro, por favor. Ganhei meu dia! Sério, abri um sorriso de orelha a orelha, percebi que este mundo egoísta não está completamente perdido. Agradeci a gentileza e subi no coletivo, pensando na mãe atenciosa que estava por trás daquela atitude, pois inquestionavelmente cortesia e cavalheirismo se aprendem em casa.

O grupo falante logo chegou ao seu destino, e os assentos foram novamente tomados por homens robustos a caminho de seus trabalhos. Entre tantos que subiam, estava uma mãe com uma criança de colo. Era visível sua dificuldade, dividida entre segurar a criança, a bolsa que carregava, e firmar-se para não cair com os solavancos do coletivo. Fiquei imaginando qual dos senhores seria o mais rápido em se levantar, oferecendo seu assento para a mãe. Procurei nos rostos indícios de cavalheirismo, tentando adivinhar onde estaria o melhor marido, o bom pai, pois nossa atitude em sociedade é um reflexo de como vivemos dentro das paredes de nosso lar.

Mas esperei em vão: nenhum, NENHUM homem sequer se levantou. Nenhum para representar a espécie, que nesse momento recebeu completamente o meu desprezo. Óbvio que me levantei e cedi à senhora o meu lugar, agradecendo intimamente por nenhum daqueles homens ser meu esposo, pois tive um breve vislumbre do tratamento que dispensam às mães de seus filhos...

Após um dia de compromissos, estava eu novamente na parada aguardando o coletivo, a caminho de casa, quando fui abordada por uma senhora agoniada: “Você viu, minha filha? O motorista não parou pra mim!” Como assim?! Perplexa, ouvi a idosa me explicar que frequentemente vivencia o mesmo problema. Com dificuldades para andar, vê as portas do coletivo se fecharem antes que ela possa ter acesso a ele. A situação piora se ela por acaso carregar uma sacola plástica consigo. Certa vez questionou a respeito disso e lhe disseram simplesmente que mendigos não são bem-vindos no ônibus! Fiquei pasma! Que direito um motorista tem de julgar quem entra ou não em ‘seu’ veículo, e com que critérios? A marca da roupa?! A idade?! A idosa enxugou uma lágrima que lhe escorreu pelo rosto enquanto dizia: “Quando chegamos nesta idade, não temos mais valor, somos invisíveis para a sociedade. Somos um fardo que ninguém quer carregar, ainda que estejamos pagando a passagem em transportes que são ditos públicos”.

Não sei explicar minha indignação quando presencio fatos dessa natureza. A impressão inicial é a de que todos saem de casa com tanta pressa, que acabam esquecendo trancados no quarto o RESPEITO e a GENTILEZA. Mas logo vem a constatação inequívoca: não houve esquecimento, cavalheirismo nos dias de hoje é palavra em extinção, digna de um enorme PROCURA-SE atrelado a ela. A cortesia não ficou em casa, na verdade, nem sequer passou por lá. Pois quem aprende a respeitar o próximo no âmbito familiar, nunca mais esquece, não comete equívocos, não apresenta falhas nesse setor.

A idosa disse mais naquele seu momento de desabafo: “Você lembrará de mim, minha filha, quando seu tempo passar e você estiver com  minha idade. Saberá que nada somos, nada valemos, nada significamos.” Um nó na garganta silenciou minhas palavras, vi naquela senhora o futuro de minha geração. Os fortes trabalhadores, incapazes de ceder o assento a uma mãe com dificuldades, serão os velhinhos de amanhã, ignorados por jovens com fones de ouvido, alheios a tudo e a todos, focalizados unicamente em suas próprias necessidades. E a manada de elefantes perderá seu viço, sua pressa, serão facilmente convertidos em formigas no meio da multidão. Do mesmo jeito que atropelam hoje, serão esmagados amanhã.

Mas nem tudo está perdido: lembrei do jovem educado com o qual tive contato pela manhã.  Certamente aprendeu com seus pais a ter  respeito pelo próximo. E ensinará seus filhos a andarem pelo mesmo caminho. Serão poucos, mas brilharão no meio da multidão. E por causa de seu brilho, estarão naturalmente em evidência e não poderão jamais ser esmagados.

Suzy Rhoden

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...