domingo, 24 de junho de 2012

Nas Asas do Tempo







Nesta noite, após passeio nas asas mágicas do Tempo, com escala nas diversas épocas literárias, conhecendo de perto os mais brilhantes autores, vi-me subitamente pousando em território familiar:

- Ei! – perguntei ao Tempo – O que estou fazendo aqui?! Não há nada de importante neste lugar. Leve-me a outros solos, consagrados por grandes homens e mulheres, aos quais reverentemente chamamos Imortais. Leve-me até eles!

Não houve resposta, o Tempo já havia partido com suas asas velozes, deixando-me assustada e confusa lá atrás. Olhei em volta e nada me pareceu estranho, contudo distante, como se eu não pudesse estender minhas mãos e tocar.

Pensei que estivesse sozinha, mas, de repente, surgiu uma alegre menininha a cantarolar. E cantarolando foi se apossando de seus estranhos brinquedos: pequenos gravetos, caídos de uma árvore qualquer. Intrigada, observei sua prazerosa tarefa de selecioná-los e agrupá-los por ordem de tamanho, ainda com uma canção nos lábios. Até que a canção cessou.

Adiantei-me para lhe falar, queria saber o que fazia de tão interessante com simples gravetos! Mas, antes que minha voz se fizesse pronunciar, ouvi o eco de palavras pequenas, grandes e gigantes ressoando como se rodopiassem no ar. A menina só fazia pegá-las e ordená-las, e ali mesmo, para cada grupo de gravetos, criava com elas uma diferente história. Ora surgiam famílias felizes, ora relações familiares conturbadas. Ora reis e rainhas desfilavam sua realeza, ora a favela aparecia bem no meio do quintal. Mundos eram criados, reinos multiplicados, tendo neles cada personagem a sua identidade: nome, idade, endereço, profissão.

Eu teria ficado a contemplar a cena para sempre, tamanho o impacto que ela em mim causou, se não tivesse sido desperta por ruído assustador: passos rápidos se aproximavam! Depressa, escondi-me atrás de uma árvore, angustiada, porém, pelo perigo que a menininha  corria.

- Filha! Cadê você? – ouvi a voz de uma mãe aflita – Ah, você está aí! Mas querida, onde estão teus brinquedos?! Aproveita tua infância, vá brincar!

Não houve resposta, apenas um sorriso. E a mãe atarefada se afastou. Ufa, respirei com a garotinha aliviada, não foi dessa vez! Mesmo essa mãe  maravilhosa, amável e sinceramente preocupada, não seria capaz de entender tão grande segredo. Ela enxergava somente gravetos. A menininha via histórias.

Nesse momento específico, senti o lento movimento do Tempo, vindo de longe me resgatar. Não havia mais pressa em suas asas. Não havia mais lugares para visitar – não nessa noite!

A aventura nas asas do Tempo terminaria aí, se não fosse uma descoberta surpreendente, feita assim que pus meus pés em solo seguro, no tempo presente:

- Menininha sorridente, o que você faz aqui?!

                               Suzy Rhoden
       

sábado, 16 de junho de 2012

Padrões de moralidade: há lugar para eles na sociedade moderna?




Dinâmica utilizada em aula, pela professora de Direitos Humanos, merece meus comentários neste texto. Copos com água foram distribuídos aleatoriamente entre os alunos. Dentre os 38 copos, havia 2 de aparência idêntica a dos demais, porém contaminados com hidróxido de sódio. A atividade consistia na interação entre nós, alunos, como se estivéssemos em uma festa. Quando a música parava, porém, trocávamos algumas gotas de nosso copo, com colegas de nossa escolha.  A música parou 3 vezes e muitos foram os “contatos sociais” estabelecidos nesse intervalo de tempo, misturando as substâncias dos copos de todos que participaram. Finalmente, a atividade foi concluída com o acréscimo de uma gota de fenolftaleína em cada copo. A fenolftaleína reage com o sódio, alterando a cor. Todos que adquiriram coloração rósea foram contaminados ao longo da brincadeira, ou seja, não apresentavam mais a água pura com a qual a atividade teve início. No princípio, eram 2 os contaminados; no final, eram muito! Dessa forma, disse a professora, a AIDS – entre outras doenças –  propaga-se entre nós. No começo, são apenas 2, mas em questão de dias são 20, 30 pessoas, e daí por diante. 

Acredito que a dinâmica é conhecida de muitos, bem como a experiência química aqui descrita. A interpretação, com base nos símbolos, dispensa comentários. Não acontece exatamente assim em nossos dias? Trocam-se “fluidos” indiscriminadamente e sem preconceitos, afinal somos uma sociedade livre, e nos orgulhamos disso. Questionados sobre os motivos pelos quais nos envolvemos nas trocas, as respostas foram: “parecia divertido”, “todos estavam trocando”, “o colega me convidou para trocar, então pensei que seria chato dizer não”, “era apenas uma brincadeira”, entre outras. Alguns gostariam de se omitir, mas acabaram cedendo à pressão do grupo, pois não queriam carregar o rótulo de divergentes, individualistas ou qualquer coisa do gênero. Outros foram atraídos justamente pelo risco de serem contemplados com as gotinhas fatais – há quem goste de brincar com o perigo!

Mas houve 2, dentre os 38 participantes, que tinham a certeza de não estar contaminados: uma colega e eu. Bem, havia um risco mínimo de contaminação, já que recebemos os copos já preenchidos com a substância. Mas tínhamos a certeza de não ter levado a contaminação adiante, pois não trocamos fluidos com ninguém. Explico meus motivos:

Era apenas uma brincadeira, obviamente, mas de grande valor simbólico. Posso considerá-la, inclusive, um reflexo exato de nossa sociedade atual. Seria muito fácil interpretar a atividade como uma diversão e me deixar levar pelo clima do momento. Foi constrangedor, por exemplo, dizer não a uma colega querida  que se aproximou pronta para a troca: percebi a surpresa estampada no rosto dela! Muitas pessoas abandonam princípios assim, racionalizando, dizendo para si mesmas que aquilo não terá a menor importância, que não trará nenhuma conseqüência. Não abandonei os meus, fui firme justamente por se tratar – aparentemente – de uma brincadeira.

Mas que princípios são esses, aos quais me refiro? Contrariando o que a sociedade moderna e livre de tabus prega, acredito num padrão de moralidade. Escolhi para mim esse padrão, o que não significa que saio por aí julgando o padrão dos outros. Mas levanto questionamentos, apresento meus argumentos, dentro da liberdade que possuo para fazê-lo.

Por exemplo, como somos orientados a educar nossas filhas no que se refere a vida sexual? Mal entram na adolescência, somos estimulados a levá-las  ao ginecologista, com a ajuda do qual deverão escolher o melhor método contraceptivo. Camisinhas são apresentadas e doadas, como se fosse o melhor presente que o melhor dos pais pudesse oferecer a uma filha. Quanto aos filhos, elimina-se a visita ao médico e antecipa-se a idade em que receberá o referido presente.

Não me importo de ser taxada de careta, antiquada, alienada, conservadora, moralista, etc, e nem me preocupo um instante sequer com a possibilidade de ficar sozinha defendendo o que acredito, mas fui criada com determinados valores, e eles serão passados adiante, de geração em geração, dentro de minha família – com o devido respeito ao livre arbítrio, digno de todo ser humano.

Não presenteio meus filhos com as camisinhas, ensino-lhes a lei da castidade tal qual relatada nas escrituras (a saber: Bíblia, Livro de Mórmon e outros escritos sagrados). Naturalmente, eles recebem toda informação, e justamente por isso tendem a fazer escolhas semelhantes a minha e a de meu marido, nos tempos de namoro: mantermo-nos puros e castos até o dia de nosso casamento. Fiz isso pessoalmente, meu marido fez o mesmo, e de igual maneira agem os jovens fieis de nossa religião, homens e mulheres indistintamente. Falta-nos algo por isso? Fomos privados de alguma alegria realmente importante por tomarmos essa decisão? Tenho a certeza mais absoluta de que não, muito pelo contrário: fomos preservados de doenças venéreas de todo tipo, gravidez precoce e indesejada – que conduz ao aborto muitas vezes – e de relações vazias e insatisfatórias, que duram uma noite e conduzem a frustração por muitos dias.

Alguns mencionarão minha coragem por fazer publicamente esta declaração, e eu me antecipo na resposta: coragem? Não. São princípios. Não preciso de coragem para escolhê-los, já foram escolhidos há muitos anos. Preciso apenas de firmeza para vivê-los. Corajoso mesmo é quem encara todos os riscos que enumerei por uma noite de prazer apenas! Desculpem-me os adeptos, mas meu corpo e minha saúde valem muito, muito mais do que algumas horas de diversão.

Sei de antemão que minhas palavras são chocantes, e isso é o que mais me incomoda: por que a moralidade choca hoje em dia? Dizer-se cristão ou, independente de religião, fiel a princípios parece ofensivo atualmente. Como chegamos a esta inversão?! Não prego o preconceito, muito pelo contrário: luto arduamente contra ele. Não interfiro na vida alheia, cada um com suas escolhas! Mas não preciso dizê-las corretas só para agradar, não tenho de modo algum que concordar com elas. No fim das contas, apresento simplesmente meus argumentos e minhas justificativas para a escolha que fiz, em termos de moralidade, e que cada um julgue por si mesmo e faça o que lhe parecer melhor, lembrando que cada escolha traz atrelada a si pelo menos uma conseqüência.

Atesto a alegria de viver segundo valores firmemente estabelecidos. Não são imposições, são escolhas. Não são fardos, não me pesam. Demonstram minha disposição de viver plenamente e minha responsabilidade em relação ao meu companheiro, pois não me coloco como um risco em potencial na vida dele. Se tivesse que defender sozinha esse padrão de moralidade, ainda assim o faria. Mas felizmente há uma multidão de Santos dos Últimos Dias e de pessoas de todas as religiões, ou mesmo sem religião, que vivem segundo esse princípio: preservam a castidade até o casamento. Levantamos aqui, pacificamente mas com firmeza, a nossa bandeira!


Atividade  realizada com moças SUD, em Santa Maria RS
 Programa  Novos Inícios -  Retorno à Virtude
 (abril 2009)
Suzy Rhoden

domingo, 10 de junho de 2012

Felizes Para Sempre?


Impossível permanecermos apáticos diante da movimentação que precede a data: Dia dos Namorados. Os comprometidos saem em busca de presentes, e os solteiros usam a ferramenta de que dispõem para gritar ao mundo, via comunidades virtuais e páginas de relacionamento, que precisam de um companheiro nessa data tanto quanto precisariam de um índio para celebrar seu dia específico. Tal movimentação, de uns e de outros, sejam quais forem suas motivações, deixa claro: para os brasileiros, o dia 12 de junho definitivamente não passa em branco no calendário.

Ao invés de contestar a data simbólica, eu, que geralmente sou “do contra”, desta vez vou aderir. Não por concordar com o apelo consumista destes dias - tamanho consumismo é deveras desnecessário - mas porque tenho um namorado, um marido e um amor, e  - impressionante! - é a mesma pessoa. Alguns podem dizer que estou desatualizada, mas eu reconheceria a léguas a inveja em um comentário desse tipo, pois quem, por mais independente ou auto-suficiente que seja, não gostaria de ter um amor, sincero e real, que durasse a vida inteira?!

Tenho de fato um amor, e quero falar sobre ele. Nossa história começou ao contrário. Mal nos conhecemos, marcamos a data do noivado e a do casamento. Então, antes que houvesse tempo para qualquer outra coisa, ele se tornou meu marido. Fomos casados e selados no Templo, para esta vida e para toda eternidade, conforme determinam nossas crenças pessoais. E vivemos felizes para sempre.


Nada disso! Esse é o final das histórias infantis. Mas cresci e deixei de acreditar em contos de fadas. A frase adequada é: E pusemo-nos ao trabalho para vivermos felizes para sempre. Foi então que passamos a namorar, e finalmente pude começar a dizer por aí: “Tenho um namorado!” Mas não se iludam, o namoro não deu muito certo no princípio. Se eu pudesse ilustrar essa fase de nosso casamento, utilizaria sem hesitar a gravura de dois burros, amarrados um ao outro, indo cada um para um lado oposto, na direção de alimentos ali deixados, em dois montes distintos. Naturalmente a corda esticava, e como cada um puxava para seu lado sem ceder um milímetro, nenhum animal se alimentava. Tenho a imagem vívida em minha mente, e nenhuma descreve melhor os primeiros meses de meu casamento, ou seja, meu namoro. Foi nesse período que conhecemos de fato um ao outro. Que descobrimos as qualidades e, o que é terrivelmente assustador, que o outro não era o ser perfeito dos nossos sonhos! E então, o que fazer? Como dois burros atrelados, empacamos. Burros no duplo sentido da palavra: denotativo, numa referência a imagem descrita; conotativo, considerando a estupidez de nossas escolhas. Empacamos porque nosso namoro, e todo encantamento típico dessa fase, simplesmente se desintegrava como fumaça no ar. Aparentemente não evoluíamos. E os burros da história começaram a passar fome!


A esta altura, posso adivinhar os pensamentos de alguns: para que tanto sofrimento, afinal? Não seria mais lógico romper aquela corda, já que um não nasceu unido ao outro? Tão fácil desatar os laços... E ainda mais fácil do que devolver a liberdade aos animais da ilustração seria recorrer ao divórcio. Tão prático, tão simples, tão comum em nossos dias. E tão inútil! Que aprenderiam aqueles animais sobre a vida, se não tivessem que buscar juntos uma solução para seu problema? Egoístas, teriam que viver para sempre solitários, pois se novamente atrelados a outro, viveriam o mesmo dilema. Não acredito no divórcio como solução de problemas, embora o reconheça como recurso disponível e inevitável em certas situações. Na maioria dos casos, porém, a solução milagrosa não passa de uma fuga disfarçada de necessidade.


Após alguns meses de fome de amor e afeto, começamos a pensar. E quando pensamos, agimos. E quando agimos, resolvemos qualquer situação. Tão simples e tão óbvio! Como os burros precisavam andar primeiro em direção a um monte de alimentos, nutrirem-se juntos com ele, e depois andar em direção ao outro, nós precisávamos tão somente olhar e andar na mesma direção. Eu já tinha um marido, também um namorado, mas foi nesse dia de sol que ganhei um amor. E o amor significa exatamente isso: vencer  barreiras de egoísmo, destroçar  paredes de orgulho, suplantar montes de presunção. Não se requer compatibilidade de gênios para isso, nem que um dos cônjuges se anule em função do outro, muito pelo contrário: é necessário somente a disposição de olhar para além de si mesmo.

Não tenho qualquer dúvida de que justificativas para o divórcio, em tempos atuais, se acham às pencas. É de fato a saída pela tangente,  cômoda e propícia. Mas o desejo de permanecer casados, de reconquistar o amor quando ele parece de chama ardente ter-se transformado em brasa adormecida, esse requer esforço e poucos estão dispostos a pagar o preço. Como conseqüência, os namorados e os maridos se multiplicam, mas poucos de fato encontram um amor. Eu encontrei o meu, e como já mencionei, foi numa história que começou ao contrário. Se uma história às avessas pode dar certo, como justificar o fim em um relacionamento planejado, devidamente organizado em seus períodos? Certamente aí está o problema: estipular um começo, um meio e um fim para todas as coisas, partindo do conceito de que sentimentos eternizados estão fora de moda, ou, ainda que voltassem para a moda, estariam fora de nosso controle. Verdade, controlar o sentimento alheio não é algo que nos cabe ou que possa ser realmente possível. Mas controlar minhas decisões em um relacionamento é algo que faço com alegria, sem delegar tudo à ação do tempo ou do destino. Não acredito em fórmulas exatas, receitas para o sucesso, mas estou convicta de que qualquer casamento pode dar certo, havendo em ambos os envolvidos esse desejo e um mínimo de interesse pessoal em facilitar o acesso.


Basta de burros teimosos, acreditando que pode haver alguma vitória em jamais ceder! Basta de pessoas que trilharam metade do caminho e que saem por aí desacreditando o casamento e as relações duradouras: estou aqui para atestar a alegria de persistir. Afirmo que, embora árduo, é um caminho de realizações que não se conseguem, na mesma proporção, em nenhuma outra área da vida, nem pessoal, nem profissional. E viva o dia 12 de junho! Tenho muito a celebrar: tenho um namorado, um marido e um amor! E, a exemplo de Rapunzel e seu par romântico no filme Enrolados, “estamos vivendo felizes para sempre”... Sim, para toda eternidade!


Templo de Porto Alegre - A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias
Suzy Rhoden
* Texto reeditado, publicado originalmente em julho de 2011.






domingo, 3 de junho de 2012

Como se não houvesse amanhã...



Lidamos com a dor de muitas maneiras. Em recente aula, analisamos o comportamento da atriz Cissa Guimarães diante da dor suprema que uma pessoa pode ter de enfrentar nesta vida: a morte de um filho. Ela concentrou sua dor no trabalho: em apenas 2 semanas retornou aos palcos, de onde extraía naquele momento uma alegria que dentro dela definitivamente não podia existir. Falei para uma colega que essa é também minha maneira de encarar os infortúnios da vida: torno-me produtiva ao extremo justamente no auge das dificuldades. Mas, teorias a parte, sei bem que viver hipoteticamente uma situação é coisa muito diferente de senti-la na própria pele... Eu não tinha como prever, mas naquele mesmo dia uma amiga querida, e digna de toda minha admiração, viria a perder seu filho de 22 anos, vítima de acidente automobilístico.

O fim de semana que seguiu foi trágico. O mesmo acidente vitimou outra amiga, pessoa tão cheia de energia e disposição que é difícil fechar os olhos e não vê-la regendo com vigor o coral de nossa igreja. Acredito piamente que agora canta com os anjos, num coro celeste digno de seu talento musical.

E isso não foi tudo. Partiu deste mundo também um senhor idoso, cuja vontade de trabalhar e de fazer acontecer era a de um menino hiperativo! Para se ter uma idéia exata de quem era esse  homem, basta informar que participei de seu casamento há 1 ano: o simples enlace de pessoas maduras? Nada disso, um casamento lindo, tradicional, com tudo que um casal de jovens apaixonados tem direito. Pois assim viveram aquele ano juntos, completamente enamorados!

Gostaria de encerrar aqui as notas de falecimento desta crônica, mas no último fim de semana fomos novamente surpreendidos por uma partida inesperada: o vizinho da casa ao lado caiu, bateu a cabeça e não resistiu... tudo tão de repente! Desta vez não me refiro a um senhor idoso, mas ao pai de uma menina de 2 anos, o que mexe profundamente com minha sensibilidade.

Diante dessa sequência de acontecimentos, impossível não olhar com outros olhos para esta passagem em nossa linha do tempo, chamada vida. Inevitável o mergulho em profunda reflexão sobre o propósito de tudo aqui... esta jornada que de uma hora pra outra acaba, por vezes sem qualquer aviso prévio. Quanto ao depois, tenho crenças firmemente estabelecidas, que me sustentam. O agora é que me interessa e que, de certa forma, me incomoda.

Passada uma semana dos funerais relatados, meu marido e eu fizemos  visita solidária a viúva do senhor idoso. Preparei-me para aquele momento, teria de confortá-la da melhor maneira, enxugar suas lágrimas. Embora compartilhemos da crença de que as famílias podem ser eternas, sentia-me impotente diante da dor do momento, do sentimento de ausência da pessoa querida, portanto confesso não saber exatamente o que dizer...

Não foi preciso dizer nada, o melhor que me coube fazer foi ouvir e aprender. Eu, que pretendia confortar, retornei da visita confortada e verdadeiramente fortalecida. Passei algumas horas insubstituíveis na sala de uma mulher madura, que falava com um sorriso sobre as qualidades de seu amado. Conheceram-se há pouco mais de um ano, dizia ela. E apaixonaram-se à primeira vista. Modo de dizer, claro... Não, contestou ela! Apaixonou-se como uma adolescente, sentia o coração palpitar quando o via, até as borboletas no estômago ela mencionou... ela por volta dos 70 e ele dos 80 anos, ambos viúvos!!! Viveram um grande amor, eterno na intensidade, a despeito dos breves 12 meses e 1 semana que lhes foram dados pela condescendência divina. Souberam viver cada dia, e amar a cada dia, como poucos de nós mais jovens sabemos!

Prestei atenção aos detalhes de seu relato... buscava um ponto negativo, talvez um grão de desavença. Se houve, ela realmente não se lembra. Guardou apenas o que foi bom, o que foi digno e verdadeiro. Dessas histórias lindas é que ela nos falou, enquanto abria vários álbuns: uns com  fotos do casamento, outros com poemas e músicas que o amado compunha pra ela, sua musa inspiradora. Compartilhou conosco alguns de seus  preciosos segredos, como quando ele perguntou se poderia visitá-la em sua casa, e ela de imediato respondeu: só depois que eu participar minhas vizinhas sobre nosso namoro, pois não quero ninguém falando de mim! Ele respeitou e ainda mais se encantou com sua dignidade. Também falou-nos das serenatas, tão freqüentes mas sempre surpreendentes, debaixo de sua janela. O namorado cantava e tocava pra ela! Outras vezes, já casados, ele a acordava cantarolando Que Mulher Maravilhosa – paráfrase da canção Que Manhã Maravilhosa – entre tantos outros versos românticos dedicados a ela.

E assim viveram dias de carinho e amor. Para ela, dias de dedicação, pois em virtude da idade avançada ele estava sempre às voltas com enfermidades. Eu os conheci de perto e não tive notícias de reclamações da esposa. Muito pelo contrário, o zelo de um em relação ao outro era visível até mesmo ao mais relapso observador. Familiares e amigos próximos não hesitam em declarar: nunca foram tão felizes nesta existência!

Encontrei naquele casal uma lição de como viver bem. Lição que eles próprios vieram a aprender já amadurecidos pela vida. Isso explica minhas reflexões acerca do agora... intrigada, me questiono: por que precisamos esperar os 80 anos para colocar em prática o que sabemos que funciona, que dá certo? Por que nos apegamos a detalhes tolos do dia-a-dia para amar menos e desprezar oportunidades de demonstrar amor? Banalidades nos desviam do foco, como a toalha molhada sobre a cama ou a porta do armário esquecida aberta... Permitimos facilmente que as coisas adquiram valor maior do que o das pessoas a nossa volta, e por esse erro de julgamento nos perdemos, deixamos de expressar o valor que a pessoa ao lado tem para nós.

É dura, mas real a constatação: um dia qualquer será o último, para nós ou para alguém que amamos muito. No mesmo fim de semana, perdi um amigo de 22  e outro de 80 anos. Onde encontrar consolo nessas horas? Na vida bem vivida. Estou certa de que aí está o conforto. Na paz de consciência, na certeza de que cada dia valeu a pena. O agora é a resposta, exatamente como sentenciou Renato Russo há vários anos: É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã!!! O amor demonstrado no tempo certo previne as lágrimas do tempo incerto...

A voz mansa da senhora viúva ainda ressoa em meus ouvidos. Suas histórias são músicas que embalam meus dias desde então; seus álbuns são documentos que atestam a realidade do amor, em qualquer tempo, em qualquer idade. A morte passou e não a devastou, de modo que, apesar da saudade, ela vive como se o companheiro querido não tivesse partido: ele apenas mudou de aposento, mas sua presença é muito viva e continua enchendo de alegria aquela casa.

Homenagem aos noivos mencionados no texto, Maria Elaine e  Enio Alves Cannavo (In Memoriam)

Suzy Rhoden

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