segunda-feira, 30 de julho de 2012

Serviço ao Próximo: Elo entre Religiões


Suzy, isto eu acho lindo na religião de vocês: ao invés de criticarem as outras religiões, estão ajudando o próximo”.

A constatação, feita por amiga querida que não compartilha de minha fé, penetrou com força em meu coração, enchendo-me de alegria. Pois, baseada em observação pessoal, ela conseguiu captar exatamente a essência do povo SUD (membros de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias): o respeito pelas crenças alheias e o serviço ao próximo.

Não gosto de imposições. Quem gosta? Ninguém me obrigou a escolher a religião SUD, filiei-me à igreja por minha própria vontade. Senti-me acolhida e valorizada desde o primeiro instante, tendo total liberdade para fazer minhas escolhas. A 11ª Regra de Fé da religião deixa esse princípio evidente:

Pretendemos o privilégio de adorar a Deus Todo-Poderoso de acordo com os ditames de nossa própria consciência; e concedemos a todos os homens o mesmo privilégio, deixando-os adorar como, onde ou o que desejarem”.

Portanto, o ataque a outras religiões é algo que definitivamente não faz parte de nosso trabalho missionário. Por outro lado, somos alvo freqüente de quem desconhece a doutrina da igreja e tenta deturpá-la das mais variadas maneiras. O que fazemos? Continuamos trabalhando para nosso próprio aperfeiçoamento e para o bem-estar de nosso próximo.  Rebater críticas seria uma perda de tempo, e tempo é precioso para quem tem a intenção de ser útil!

Chegamos ao segundo ponto, abordado por minha amiga em seu feliz comentário: estamos servindo o próximo. Sim, é o que pretendemos, o que mais desejamos! Discreta e silenciosamente, na grande maioria das vezes. Porém, quando se trata de meta nacional ou mundial, a cobertura midiática é inevitável. Foi o que aconteceu no sábado, 28 de julho, em relação ao projeto Mãos que Ajudam.

Trata-se de um programa permanente de ajuda humanitária e serviço comunitário. Sendo permanente, a ação é contínua e acontece em todas as unidades da igreja. O projeto desenvolvido adapta-se às necessidades de cada comunidade e o serviço é inteiramente voluntário – sem remuneração – sendo realizado por membros e amigos da igreja. Quando a meta é nacional, a mesma ação é desenvolvida de norte a sul, o que gera um sentimento muito especial de unidade e fortalecimento. 

O projeto em questão foi lançado em março, sob o título Mãos que Ajudam a Armazenar e Doar Alimentos. A partir de então, arroz e feijão passaram a ser armazenados em grandes quantidades, provenientes de doações espontâneas. O armazenamento, que é uma prática da igreja, tem a intenção de evitar o desperdício de grãos, bem como aumentar a validade dos produtos. Além disso, a utilização de garrafas pets como embalagem está de acordo com nossa visão de uma cultura solidária sustentável, voltada para a reciclagem e reaproveitamento de materiais. As técnicas de armazenamento foram transmitidas à comunidade, através de oficinas realizadas de março a julho deste ano.



A segunda parte do projeto consistia na doação desses alimentos, devidamente armazenados, a instituições locais previamente selecionadas, cujos representantes participaram das oficinas desenvolvidas. A entrega dos donativos aconteceu no último sábado, ultrapassando a meta nacional de 400 toneladas de alimentos – conseguimos mais de 500!




Talvez alguns pensem: “eles fazem isso para aparecer na mídia!” Não nos importamos com o comentário, pois, se não aparecêssemos, haveria alguém para dizer: “eles nada fazem!”. Portanto, como complementou minha querida amiga: “Critica quem não faz nada, não é mesmo?” É exatamente assim.


Por fim, quero deixar registrada aqui minha experiência pessoal, contando um pouco do que vivi no último sábado: adaptamos o projeto em nossa unidade, aliando a doação de alimentos ao “sopão” preparado e servido mensalmente, numa ação conjunta da Igreja Católica com A Igreja de Jesus Cristos dos Santos dos Últimos Dias. Crenças diferentes? Sim, completamente. Mas isso não tem  a menor importância para as crianças beneficiadas pelo programa, todas carentes, integrantes de uma comunidade local. O sentimento era de união em um nobre propósito – como acontece todos os meses – ultrapassando as fronteiras de religião. E isso é o que realmente importa.



Lá conheci Éric, 2 anos, seu irmão Fernando, 4, e o tio de ambos, Daniel, 10 anos. Entre muitas outras crianças. Mas essas ganharam minha atenção quase de imediato, visto que Éric chorava sem parar. Queria a avó, explicou o tio, que tentava auxiliar nas tarefas do dia. Para distraí-lo, segurei o pequeno no colo enquanto conversava com o trio. Em minutos contaram-me, sem que eu nada perguntasse a respeito, que o pai tinha ido embora, e a mamãe também, há poucos dias. Entendi a insistência de Éric em garantir que a avó estivesse ao alcance de suas mãozinhas: para que não fugisse também! Mas ele logo distraiu, sorriu pra mim e colou seu rosto ao meu. A atitude chamou a atenção de uma senhora, conhecida da família, que se aproximou e sussurrou: “Ele não aceita o colo de ninguém! Mas a mãe dele tinha o cabelo loirinho assim, semelhante ao seu... acho que ele olha pra você e lembra dela!”

Confesso que, em dado momento, pedi licença e fui ao banheiro para disfarçar as lágrimas. Como alguém poderia ter abandonado dois anjos como aqueles que eu acabara de conhecer, praticamente sem alimento, sem carinho e proteção?! Mas bastou um instante para eu me recompor emocionalmente, conforme veio a compreensão:

Éric não precisa de lágrimas derramadas por ele; precisa de pessoas que abracem sua causa, arregacem as mangas e não tenham medo, vergonha ou preguiça de colocar-se em ação!

Este é o Éric :)


Suzy Rhoden

domingo, 22 de julho de 2012

Feliz Dia do Amigo... atrasado! Ou não...


Semana de muitos compromissos, sequer me dei conta de que, no meio dela, havia uma data especial: um Dia do Amigo! Fiquei devendo para muitos queridos, que vieram postar felicitações em minhas páginas virtuais. Sinto muito, não receberam de mim um retorno, um obrigada, um “Feliz dia pra você também!”. Sinceramente, não sou mal educada e nem ingrata, apenas estive ocupada demais justamente nesta semana!

Mas há outro motivo – que não é uma crítica, de modo algum, aos que celebraram esse dia – pelo qual a data me passou despercebida: é apenas mais um dia, no meio de tantos, para se viver a amizade! A mesma gratidão que expressei no dia 20 de julho, poderia ter expressado no dia 19, ou no dia 21... que diferença faz?! Amizade, de verdade, é pra ser vivida todos os dias!

Claro, vale o lembrete do dia 20... Tudo bem, eu aceito, eu até concordo. Mas não me julguem menos amiga caso eu não tenha soltado fogos de artifícios nesse dia! Talvez eu não tenha conseguido, talvez eu tenha estado doente, ou demasiadamente aflita por algum motivo, ou triste, ou... O que quero dizer é que SER um amigo sempre vale mais do que apenas lembrar do dia do amigo!

Estive pensando – esta minha mania de pensar alto... e por escrito! – que qualquer esforço para definir a amizade em palavras é vão. Pois amizade não se descreve e não se mede. E não se cobra, principalmente. Aquela história de “se você é minha amiga mesmo, você faz isso ou faz aquilo” não vale mais nem para o Jardim de Infância! Percebo na reação de minha filha que, quanto mais imposta uma amizade, mais ela foge das amiguinhas tiranas. Bom mesmo é amar de graça e ser amada espontaneamente!

Outro ponto polêmico no assunto diz respeito ao perdão: “errou comigo uma vez, nunca mais!” e similares não fazem sentido para mim. Por quê? Serei eu uma alma extremamente caridosa e evoluída? Não, sou justamente muito humana! Humana o suficiente para saber que eu também erro, muitas vezes sem querer ou perceber, mas erro com meus amigos e dependo da condescendência deles. Erro quando estou mal-humorada e recebo um simples comentário como uma punhalada, reagindo impulsivamente e ferindo quem nem sequer sonhou em me ofender! Erro quando tiro conclusões precipitadas ao invés de, diplomaticamente, esclarecer a situação e desfazer os mal- entendidos.  Erro das mais variadas formas e preciso ser perdoada praticamente todos os dias – por que não perdoar quem erra comigo também?!

Além disso, tenho a alegria de dizer que algumas pessoas que já me feriram são atualmente algumas de minhas melhores amigas. Não faço questão de viver do passado, aprendo com ele e moldo o futuro a partir da lição recebida! Se posso crescer e amadurecer, a outra pessoa merece essa chance também. Feridas cicatrizam e, em tempos de cirurgia estética, são completamente apagadas da pele: por que não dar o mesmo tratamento ao coração? Nesse caso, somos os próprios cirurgiões, mas afirmo que o resultado é incrível!

E se o “amigo” for de fato maldoso e insistir em nos ferir continuamente? É, o mundo está repleto de seres assim, infelizmente. Mas, nessas circunstâncias, o problema está com eles e não conosco! Esforço-me por perdoar da mesma maneira, embora deixe bem claro o limite de atuação que essas pessoas terão em minha vida. Chamo essa estratégia de “legítima defesa”.  Ou seja, minha intenção não é o ataque e sim a defesa de meus valores e princípios: respeito é algo inerente a amizade.

Por fim, questiono a freqüente expressão “amigos verdadeiros”. Na condição de amigos, são obrigatoriamente verdadeiros! Para que a redundância, afinal?! Se não são verdadeiros, que sejam chamados de “meros conhecidos” então! Amigo é amigo, sempre, e ponto final.

Depois de tudo, não venho me desculpar pelo atraso, pois acredito estar atualizadíssima nesta data: Feliz dia para você, que é meu amigo, seja através de laços reais ou virtuais! Que este 22 de julho seja nosso Dia do Amigo! E também o dia 23, o dia 24, o dia...

Suzy Rhoden

sábado, 14 de julho de 2012

Nômade por Opção


“Mudança?! De novo!!!”

“Sim, estou  mudando. De novo. De casa, de cidade, de profissão.”

E o diálogo se repete a cada esquina, em cada conversa ao telefone, nas páginas de relacionamento. Segue às palavras transcritas um suspiro de sinceros pêsames e uma solidariedade da qual não posso deixar de achar graça, enquanto acompanho no olhar de meus interlocutores a tradução de seus pensamentos: “Coitada, quanto trabalho pela frente! Que trágico destino! Ter de partir assim, como se não tivesse raízes...”

Amigos, agradeço sinceramente a preocupação. Mas em mudar-se não há trabalho algum! Trabalhoso mesmo é enfrentar todos os dias a mesma rotina, a mesma casa, a mesma vida. Isso é o que de fato me dá cansaço, por vezes me leva à exaustão. Encaixotar coisas é um prazer, afinal são as minhas coisas! E há quanto tempo eu não reservava um momento especial para elas... Para ver as fotos da faculdade, da época em que usar sapato social e meia soquete era moda... e o cabelo então, quanta diferença! Felizmente, ninguém teve a idéia de trazer de volta aquela franja arrepiada à la Chitãozinho e Xororó... Os velhos CDs, em total desuso atualmente graças a tecnologia, mas que embalaram o nascer de uma paixão. Os livros, lidos e guardados entre os favoritos; lidos e esquecidos; e os nunca lidos, que agora finalmente terão  sua oportunidade! Roupas e acessórios que vão enchendo caixas de doação e deixando espaço livre para os novos itens que serão adquiridos... Louças, faqueiros, lençóis, jogos de toalhas... eu nem sabia que os tinha! Todos presentes de casamento, intactos, que afortunadamente combinam de maneira impressionante com a decoração da  nova casa... E segue a lista das novidades, entre nossos pertences antigos, que só têm sua vez quando se abrem os baús. Que há de trabalhoso, de chato, de desagradável nisso?!

Outro aspecto amplamente comentado é a tristeza da partida. Por que tem que ser triste? É um padrão? Devo revestir meu rosto de lágrimas? Sinto muito, eu não consigo, não sou assim. E não é por amar de menos, mas justamente por amar demais o lugar onde vivi, as pessoas que ali conheci... Quando amo, sou intensa, sou plena. Amo completamente e a cada instante. Não guardo reservas para o dia seguinte, nem tenho o intuito de utilizar sobras de hoje para aliviar o remorso do amor que  não demonstrei. Cada dia traz a sua medida, e nela me regozijo. Portanto, pra que chorar na despedida?! O semblante abatido em que será útil, se ele não compensa os dias em que poderia ter servido pessoas queridas, mas por egoísmo não me doei? O que vale mesmo, e o que de fato fica, são os capítulos já preenchidos: se agora vem a vírgula ou o ponto final, pouca diferença faz, não muda a história que já se escreveu.

Nem desapego, nem frieza. Sou assim bem-resolvida, ponto. Por dentro, um turbilhão de sentimentos, todos bons, positivos, otimistas. Por fora... o reflexo radiante de tudo que vai por dentro! Sou transparente e não nego a felicidade que sinto. Portanto, eis a razão de meu sorriso, a natureza de minha alegria – mesmo às vésperas de uma partida!

Quanto ao meu baú de recordações, é um privilégio abri-lo de tempos em tempos. Da mesma forma que, quando é chegada a hora de lacrá-lo para a partida, eu o faço sem hesitar. Carrego meu baú comigo, aonde for levarei  minha história... mas não estou presa dentro dele, eu não caberia ali! Deixem que as fotos - e meus textos, meus registros -  contem meu passado: daremos boas gargalhadas com eles, na ocasião da próxima mudança.

Quanto a mim, ao invés de raízes, tenho asas! Quero mais é partir, seguir rumo ao desconhecido, viver... Pois o que gosto mesmo é  de explorar páginas inteiras em branco: só para nelas ter o prazer de escrever inéditas, belas histórias!

Suzy Rhoden




sábado, 7 de julho de 2012

Violência Doméstica: quando recomeçar é um passo necessário!


O Dia da Formatura

Das Dores, frente ao espelho, viu-se realmente bela pela primeira vez. O terno preto, discreto como pedia a ocasião, caía-lhe perfeitamente bem. Tinha os cabelos presos em trança embutida lateral, penteado que aprovou com um sorriso. Acessórios cuidadosamente escolhidos completavam o elegante visual. Estava linda, não havia dúvidas! Sentia-se linda, o que de fato importava.

Com o dedo indicador, roçou a pele na altura dos lábios, onde encontrou, encoberta pela maquiagem, uma cicatriz. Não podia vê-la, mas sabia que estava ali. Suplantada, vencida, sobrepujada. Era um símbolo externo daquilo que  lhe ia por dentro: tal qual a maquiagem em relação às imperfeições da pele, sentia a alegria curar as feridas da alma. A felicidade era seu trunfo, sua mais solene vitória!

Mas faltava algo, um último confronto. Não diziam que os piores medos são dissipados após o enfrentamento? Ali estava ela, corajosamente disposta a enfrentar-se no espelho. Precisava daquele derradeiro momento.

Em questão de segundos, seus olhos vivos e radiantes repousaram sobre uma pobre e acuada criatura: chamava-se Maria das Dores, moça humilde do interior. Casara-se cedo, com o primeiro namorado, um homem mais velho, hábil com as palavras. Logo viu-se grávida e, portanto, impedida de prosseguir com os estudos. Uma pena, diziam as professoras, pois sempre fora muito inteligente, uma espécie de mente inquieta. Que se aquietou, contudo, quando o marido começou a proferir aos brados quem é que mandava em casa. Maria das Dores anulou-se, passou a viver em função dele. 

Não demorou muito para começarem as agressões. Dependente do marido de muitas maneiras, Das Dores viveu uma fase de negação. Dizia pra si mesma que ele havia perdido o controle por um momento, mas que aquilo não voltaria a acontecer; que era um homem bom, não teria agido daquela maneira se não estivesse sob a influência do álcool. Os abusos continuavam, contudo, e pelos motivos mais banais, com ou sem bebida. Das Dores não contou pra ninguém, sentia vergonha. Optou por uma vida cada vez mais reclusa, afastou-se até mesmo dos familiares e amigos próximos para não ter de explicar a origem de  hematomas que surgiam misteriosamente em seu corpo.

Por que agia daquela maneira? Não sabia. Não naquela época. Mas agora entendia que não se pode esperar conduta diversa de uma mulher fragilizada, em situação de completa  vulnerabilidade.  Sentia-se só e realmente não via a quem recorrer. Como falar de algo tão íntimo pra alguém? Chamar a polícia significaria a rua inteira diante de sua porta... Como olhar para os vizinhos depois do espetáculo? Vergonha. E medo também. Medo do futuro incerto, com suas crianças ainda pequenas... Se denunciasse o companheiro, teria obrigatoriamente que se separar dele. Para onde ir? Como sustentar seus 2 filhos? Aos 25 anos, nada tinha que lhe pertencesse, nenhum ofício que lhe garantisse o pão de cada dia, nem qualquer perspectiva profissional. Estava presa, definitivamente atrelada ao seu agressor.

Os dias passavam e a situação da pobre Das Dores só piorava. Tratada como objeto, a mulher vivia para satisfazer as vontades de seu possuidor. Ao invés de um marido, tinha um dono, a quem devia subserviência. Não ousava erguer a voz para ele, pois no fundo se sentia culpada e responsável por tudo: não se casara por amor e sim para fugir de um lar onde a mãe vivia em sistema de escravidão enquanto o pai gozava de plenos poderes, inclusive o de maltratar a esposa quando lhe parecesse conveniente – de preferência, humilhá-la na frente das visitas. Das Dores jurava que sua história seria diferente, que havia escolhido um bom homem. Em menos de 1 ano, porém, quando as máscaras caíram, a pobre mulher viu que os personagens haviam mudado, mas o enredo era exatamente o mesmo e, o que era pior, ela não via qualquer possibilidade de um “final feliz”.  Aceitou a amarga sina, resignou-se dizendo pra si mesma que seu destino fora traçado no dia em que a mãe, prevendo lágrimas, declarou perante o escrivão: Maria das Dores Silveira. E assim foi.

Mas houve um momento em que todos os limites foram ultrapassados e Das Dores viu-se obrigada a agir! Fora atingida na altura dos lábios, por objeto arremessado por seu companheiro durante  ataque violento. O sangue jorrou abundante, manchando a parede, e ela em choque começou a gritar. Os vizinhos acudiram, chamaram a polícia, e os policiais levaram-na ao hospital. Onde estava o valentão naquele momento crucial? Ficara ali para cantar de galo e justificar sua atitude para a polícia? De modo algum, fugiu pelos fundos de casa, saltando muros e rastejando como rato pelas propriedades alheias. Sabia que seu ato era, sob qualquer circunstância, injustificável, e que seu destino seria a prisão caso fosse encontrado em flagrante delito. Fugiu, experimentando por sua vez o medo que por anos  incutiu na mente frágil e inocente de Das Dores.

Conduzida a delegacia, Das Dores registrou Boletim de Ocorrência, através do qual solicitou medidas protetivas e demonstrou seu desejo de representar contra o agressor. Não sentia o chão debaixo dos pés, seu mundo havia desabado. Ao mesmo tempo em que sentia o alívio –como alguém mantido por anos em cárcere privado sente ao reencontrar a liberdade – experimentava a incerteza, a confusão de sentimentos, a absoluta falta de perspectiva para o futuro. Sentia-se uma fracassada, uma incompetente, que não soube escolher um companheiro digno de seu amor, nem um pai decente para seus filhos. Estava machucada por fora e destruída por dentro, duvidava que para ela pudesse existir um amanhã.

A dor extrema por vezes é justamente o impulso necessário para o recomeço. Das Dores pensou em suas crianças e viu ali um ponto de partida, ao invés do ponto final. Por eles, ela renasceria; encontraria forças para redirecionar sua vida. Pensou também nas outras mulheres, vítimas silenciosas das mesmas agressões que por tanto tempo ela sofreu calada e desejou fazer algo... Não percebeu na época, mas foi ali, naquele exato instante, que ela tomou as rédeas da própria vida e começou a moldar seu destino do jeito que ele deveria ser.

Nem tudo são flores para uma mulher que rompe o ciclo de violência doméstica. Para falar a verdade, a primeira etapa é marcada apenas por espinhos. Há a necessidade de reconstrução em todos os setores da vida. Das Dores precisou de coragem, muita coragem! Pois, passado o primeiro momento, ressurgiu o marido tentando reconciliação. Ofereceu todos os motivos para o retorno, fez promessas, implorou por perdão. Como não obteve êxito, mudou a estratégia: passou a ameaçar Das Dores, impôs a ela implacável perseguição.

A princípio, ela acreditou que com a denúncia todos os seus problemas estariam resolvidos. Não funciona assim. Aprendeu com a experiência que, apesar da boa vontade de maioria dos servidores, os recursos que o Estado disponibiliza para a mulher nessas condições  são limitados. E muito dependia dela, de sua atitude. Foi inflexível, não se deixou levar pelas lisonjas do companheiro nem pelas ameaças que vieram na sequência, mas precisou redobrar os cuidados. Enfrentou o julgamento de pessoas próximas que, na hora em que mais precisou, simplesmente desapareceram. Uns porque não queriam se meter, outros porque, carregados de machismo, diziam aos quatro ventos: alguma ela deve ter aprontado! Poucos de fato entendem que, perante a lei, não há justificativa aceitável para a agressão a mulher: será sempre um crime e uma covardia.

Avaliando a sociedade machista na qual foi criada, Das Dores entendeu porque muitas mulheres silenciam como ela silenciou por muitos anos. Medo e vergonha são os principais fatores. Dependência emocional também, pois o agressor utiliza-se  da intimidação e da manipulação. Algumas mulheres dão os primeiros passos, mas perdem sua força diante da ineficiência do Estado e do despreparo de alguns servidores, e acabam voltando para os braços de seu algoz. A mente inquieta de Das Dores, livre do cárcere, voltou a questionar a sociedade e não se conformou com o que viu: retomou os estudos, formou-se em Direito.

Mas sua missão  não estava cumprida: não lhe bastava advogar em favor de mulheres em condição de extrema vulnerabilidade, queria ser a responsável pela elucidação dos fatos, trazê-los à tona, para levá-los ao juiz  embasados em provas concretas contra os agressores. Queria poder dizer, através de ação diária, que carregava a causa das mulheres vítimas, sem dar-se ao luxo de julgar os casos, mas dando voz a todas elas para que tivessem a oportunidade de quebrar o ciclo de violência em seus lares. Queria também servir de exemplo para aquelas que, fragilizadas, se sentiam incapazes de olhar para o futuro e sonhar; queria mostrar que todas têm seu valor e que podem, a qualquer tempo, tomar as rédeas da própria vida e realmente viver, trabalhar, estudar, vencer!

Das Dores, frente ao espelho, viu-se como de fato sempre foi: uma mulher guerreira, valente, disposta a enfrentar as agruras da vida com a cabeça erguida, consciente de seu valor. A mãe não estava errada, as dores fariam parte de sua existência... mas apenas como um lembrete, para que ela nunca se acomodasse, e então aprendesse que amor-próprio e felicidade não caem do céu: são conquistas a serem feitas diariamente!

Com olhar firme, despediu-se de Maria das Dores através do espelho. Seu nome agora era Maria Vitória, Delegada de Polícia, lotada na Delegacia de Atendimento à Mulher. Virou as costas e andou com passos resolutos na direção da porta. Havia muito a comemorar naquela noite de formatura.

Minha homenagem à Delegada Nadine Anflor, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher de Porto Alegre e coordenadora da Coordenadoria das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher no RS, na noite em que recebeu o prêmio "Mulheres que Fazem a Diferença".
*A história aqui relatada nada tem a ver com a história pessoal da Delegada Nadine.


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