sábado, 14 de dezembro de 2013

Frase Inacabada


Leu o e-mail e chorou.
Muitos anos haviam se passado, e Augusto ainda mexia com seus sentimentos.
Manuela não compreendia bem a insistência daquele amor, que tinha tudo para ter sido, mas nunca foi. Como um livro interrompido no meio de uma frase, assim findou seu romance: sem uma vírgula, apontando um novo caminho; sem as reticências, dando margem a continuidade da história; sem mesmo um definitivo ponto final. Uma frase que não deu certo, talvez, mas que nunca se concluiu, nem nunca disse a que veio.
Analisando friamente seu roteiro de vida, Manuela diria que ambos foram absorvidos por novas histórias, das quais viraram personagens – não autores. Aos vinte anos, seguir a correnteza das oportunidades parecia mais interessante do que projetar um futuro de meras possibilidades... Apenas foi, conforme surgiram as ofertas de trabalho, sem pensar muito, quase sem sofrer. 
O sofrimento veio depois, com a compreensão de que realizações na carreira não preenchem espaços vazios no coração. Havia uma lacuna dentro dela, uma ausência diariamente sentida, que tinha nome próprio, telefone e endereço. Melhor ainda: tinha perfil nas redes sociais.
Claro que ela pensou em entrar em contato, foi quando se deparou com o status: "em um relacionamento sério com Yolanda Ferraz". Yolanda?! A branquela, magrela do colégio? Estava linda a Yolanda (Manuela fez questão de verificar, as mídias sociais existem justamente para esse fim), mas óbvio que Manuela jurou para si mesma que a colega estava horrível e completamente sem graça. 
Aos vinte e cinco anos conheceu a palavra ciúmes. Logo ela, que tantos sermões deu nas amigas pregando o amor próprio, a autossuficiência emocional. Não era, por natureza, uma pessoa dependente ou carente, virou-se muito bem sozinha por muitos anos. O problema era a falta imensa que ele fazia no somar dos dias, o coração que já não tinha motivos para bater acelerado e as mãos que suavam somente devido ao calor nordestino... 
Teve vontade de escrever na mesma hora, dizendo para ele acabar com aquela palhaçada e que o amor da vida dele era ela, sempre seria ela. Mas não fez nada do que pensou, controlou os impulsos, ou melhor, redirecionou a súbita sobrecarga de sentimentos: começou a escrever poemas.
Por vezes, parava no meio de um verso para rir de si mesma: quem imaginaria que a arquiteta, sempre tão exata, seria derrotada por uma equação de amor não resolvida! Se não podia resolvê-la, podia escrevê-la, com toda a subjetividade que seu trabalho sempre dispensou - mas que a vida amorosa exigiu.
Às vésperas de completar trinta anos, foi surpreendida pela notícia de que Augusto e Yolanda finalmente iriam se casar. Como assim, já não eram casados há muitos anos?! Pensava que até já tivessem filhos... "Não", respondeu por mensagem o amigo em comum, o romance não ia tão bem assim, sobreviveu devido à insistência de Yolanda. Ela venceu a apatia dele e os dois, até que enfim, iriam contrair núpcias. 
Estupefata com a descoberta, Manuela decidiu que não iria silenciar mais uma vez. Abriu o email, disposta a completar o romance inacabado de sua vida de uma vez por todas, mas... na caixa de entrada, encontrou um email de Augusto!!! 
Fechou os olhos, inspirou uma grande quantidade de ar - o suficiente para ter certeza de que não desmaiaria ao se deparar com o convite de casamento de seu grande amor - e abriu a mensagem. Sem maiores explicações, Augusto endereçava: "Para você" e direcionava para o arquivo, que Manuela abriu sentindo um aperto no coração.
Ao invés do convite esperado, porém, deparou-se  com poemas, escritos ao longo de dez anos, falando de amor, de partida, de ausência, de espera, de solidão. Aquele tempo todo, eles sentiram o mesmo! Amaram por mais de dez anos no mais absoluto silêncio, sem uma explicação plausível para a tola espera pela iniciativa do outro. Dez anos de um amor transformado em platônico, quando o ser amado estava ao alcance das mãos. Leu o email e chorou.
Em uma semana, Manuela desceu do avião em Porto Alegre, carregando poucas malas e muitos sonhos. Pretendia fazer uma surpresa para Augusto. Mas a surpreendida foi a própria Manuela: chegou no dia do casamento de seu amor, e a noiva não era ela! 
Finalmente, depois de dez anos reticentes, a frase inacabada ganharia uma vírgula. Ou um ponto final. 
Suzy Rhoden

Queridos amigos, despeço-me por algum tempo da blogosfera, sem data específica para retornar... talvez antes, talvez depois do planejado... para poder acompanhar mais de perto as férias de minhas crianças. 
Aproveito para desejar a todos um feliz período de festas, com as mais sinceras lembranças do Salvador Jesus Cristo em cada lar, visto ser Dele o nascimento celebrado na bela época do Natal. 
E que depois venha o Ano Novo, pleno de bênçãos para todos nós!!!

Um abraço aos queridos leitores, até breve.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Almoço no Sítio


Recentemente, meus colegas e eu tivemos um momento de descontração, almoçando juntos num sítio local. Interessante como adultos sérios e profissionalmente comprometidos viram crianças, de acordo com a informalidade do ambiente. Tivemos alguns minutos para rejuvenescer, respirando o ar puro e inocente do campo. Foi providencial.

Enquanto andava em volta dos açudes e posava para fotos bucólicas, pensava no tempo em que eu tinha tudo isso a minha inteira disposição. Cresci no interior, em local que os cosmopolitas chamam de sítio, chácara, fazenda, qualquer coisa assim. E, por incrível que pareça, tudo que eu queria naquela época era justamente alçar voo dos campos – limitadores – para a selva de pedras – sinônimo de liberdade. Queria viver, como se a vida se fizesse, de fato, somente nos grandes centros.

Segui exatamente por esse caminho, e não me arrependo. Tinha de ser assim. Ou melhor, eu quis que fosse assim, e foi tudo muito bem feito. O que não me impediu de amadurecer e entender que liberdade, verdadeiramente, era correr por aqueles campos sem fim, atravessar as lavouras de trigo, sentindo o vento esvoaçar meus cabelos. Acompanhada de meu cachorrinho Zumbi, parceiro para qualquer tipo de aventura.

Quando penso nessas coisas, sinto cheiro da infância maravilhosa que tive. A palavra cheiro não é recurso linguístico aqui: meu olfato parece funcionar como uma máquina do tempo, reproduzindo odores de outras épocas, que chegam povoados de lembranças. Foi assim durante o almoço de integração no sítio, as recordações borbulhavam em minha mente.

Hoje lamento o fato de meus filhos não terem a mesma sorte – não desfrutarem de uma fazenda só para eles, com riachos tranquilos e árvores para escalarem. Naturalmente, podem fazê-lo aos finais de semana, mas é inegável a diferença entre acordar de segunda a sexta-feira, dando de cara com grades e muros, e abrir a porta para um quintal que se estende até onde a vista alcança. Certas coisas não tem preço, mas a gente descobre depois que pagou passagem só de ida para a vida truncada de adulto, nas grandes metrópoles. 

Valorizar o que se tem é algo que a vida vai ensinando, mas que na flor da idade teimamos em contestar: queremos mais, queremos o que está além, vivemos de anseios. Já maduros, conseguimos ser crianças outras vez, sem pressa, sem culpas. 

Como se, no embalo do balanço da vida, já não nos importasse a velocidade com que o balanço vai e vem. Bastasse o fato de estarmos ali, vivendo um momento único, recebendo um sutil empurrãozinho 'do além'. Tornamo-nos gratos porque, ao invés de passar os anos, aprendemos a sentir os segundos

Foi assim, naquele dia. Naquele sítio.


Suzy Rhoden

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Relacionamentos Humanos - (Para Gabriela)



De tanto ler e ouvir que hoje em dia não se pode mais confiar em ninguém, fiquei pensando no assunto. Estaremos diante de um caos nos relacionamentos humanos, como aquele que se viu há algum tempo no sistema aéreo brasileiro? Um tsunami de  decepções, arrastando gente indefesa que, enquanto veraneava na praia da amizade, era traída da maneira mais vil e apunhalada pelas costas?

Frases nesse teor estampam as redes sociais, a frustração é a palavra da vez. O ambiente virtual funciona como o  clube dos magoados: espaço adequado para desabafos de uns, indiretas de outros. Sinta-se à vontade para refutar a afirmativa quem nunca, nunquinha mesmo, fez uso da palavra escrita para um dos fins aqui mencionados.

Mas sabe o que penso disso tudo? Que é perda de tempo. Perdemos tempo tentando transformar o outro num arremedo de nós mesmos. Querendo que ele corresponda as nossas expectativas, ao invés de permitirmos que  seja autêntico. Cobrando e sufocando, focados em nossas necessidades, sem pensar que o outro poderá estar ainda mais ocupado do que nós, debatendo-se com problemas que nem nos passam pela cabeça!

Para mim, o problema não está nos relacionamentos humanos – está na falta deles! Não queremos nos relacionar, queremos apenas ser beneficiados O TEMPO TODO! E ainda temos a covardia de chamar isso de amizade, de induzir que o outro tem obrigações conosco porque é nosso amigo...

Não raro, agimos como se a amizade fosse uma via de sentido único  – convergindo para nós, é claro. Lembro-me do relato de uma amiga, que havia se tornado mãe de primeira viagem há poucos dias, e ainda assim, embora muito assoberbada, lembrou-se de ligar para uma conhecida. A fulana, mal atendeu o telefone, crivou a primeira de cobranças: não poderia ter sumido daquele jeito, nunca mais ligou, precisa se organizar e encontrar tempo para as amigas, ter filho não é doença terminal, virou reclusa, se isolou de todo mundo, etc, etc. Em nenhum momento se deu conta de que a sumida era justamente quem tinha ligado!

Cobrar dos outros é desgastante e inútil. Acaso podemos nós oferecer a perfeição? Para que, então, cobrá-la de meros mortais com os quais nos relacionamos?! Aí todos se afastam, porque não nos aguentam mais, e nós arrogantemente botamos a culpa na fragilidade dos relacionamentos humanos em tempos contemporâneos.

Felizmente, em minha vida nunca faltaram os bons exemplos. De gente que consegue se despir do instinto cobrador e simplesmente ser amigo. Sem pensar no que vai lucrar com isso. Sem colocar-se no relacionamento como o eixo central da terra. Sem desrespeitar a opinião do outro, pois entende que o livre arbítrio é uma dádiva divina. Sem tentar ajustar a personalidade alheia a sua, pois aceita cada filho do Pai Celestial como único e incomparável.

Quero citar dois exemplos apenas, dentre os tantos  que me ocorrem neste momento. O primeiro deles faz aniversário hoje.  E atende por Gabriela, minha AMIGA, não apenas com o A, mas com todas as letras maiúsculas. Mora bem longe de mim, fisicamente, mas às vezes me confundo e penso que ela está no meio da minha sala. Nunca senti sua ausência. Mesmo quando ficamos meses, anos sem comunicação. Ao nos reencontrarmos, falamos do ano passado como se fosse ontem, e nenhuma culpou a outra pelo sumiço.  Não estávamos sumidas, estávamos vivendo, ou seja, escrevendo histórias para mais tarde contá-las uma a outra. A desconfiança jamais ocupou nossos pensamentos, pois a amizade (o amor, a caridade) “não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal” (I Cor. 13: 5). Se não for assim, é algo, mas não é amizade.

O outro exemplo me foi trazido por Gabriela, na ocasião de sua vinda recente ao Brasil. Felizes com sua visita, todos nos empenhamos em comprar-lhe presentes, enquanto disputávamos seu tempo conosco. Uma pessoa, porém, não entrou na disputa, mas suplantou a todas nós com a discrição de sua oferta: ao invés de pedir o tempo de Gabriela, nos poucos minutos que passaram juntas deu-lhe de presente um diário. Simples assim.

Ao lê-lo, em casa, Gabriela descobriu um registro minucioso de sua amizade desde o momento em que se conheceram, as aventuras que viveram juntas, as situações inusitadas, engraçadas, tristes... momentos que se perderiam na mente assoberbada de minha amiga, se não fosse alguém interessado em dedicar seu tempo para preservar uma rica história. Alguém que se doou sem cobrar nada. Sem jogar na cara: por que não me ligou esses anos todos?! Pois entende que amizade é algo que se compartilha espontaneamente, não é uma obrigação.

De tudo isso, guardo uma conclusão: é fácil, simples e econômico construir um bom relacionamento. Mas queremos o lucro. Cobramos. Por isso afastamos as pessoas e depois lamentamos: não se pode confiar em ninguém hoje em dia!

Porém pense cada um o que quiser, e viva como lhe aprouver. De minha parte, só tenho mais uma coisa a dizer: relacionamentos humanos são uma bênção! Gabriela, você tem tudo a ver com isso. Feliz aniversário!



Suzy Rhoden

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Leitura e Contação de Histórias: Atividades em Família


A leitura é uma de minhas atividades favoritas, isso não é nenhuma novidade. Rendi-me cedo aos livros, desde que me conheço por gente. Curiosamente, porém, e contrariando as estatísticas, o estímulo não veio de casa, onde não havia sequer uma biblioteca montada.

Calma, não se apressem em julgar meus pais, reformulo minha frase: embora não existissem livros infantis a minha inteira disposição, o estímulo veio, sim, de casa, da família maravilhosa que tive.

Meus pais eram humildes agricultores, trabalhavam pelo nosso sustento, ofertando-nos o melhor e o mais saudável em termos de alimentação. Mas pouco tinham lido na vida, sequer tinham completado os estudos primários, por que afinal lhes passaria pela cabeça, como prioridade absoluta, ter uma biblioteca em casa?! Entendo muito bem a visão dos meus pais e lembro perfeitamente de seus esforços para que meus irmãos e eu estudássemos, sempre bem nutridos e bem vestidos. Ou seja, não abriram a porta para mim, mas  deram-me a chave e disseram: você pode fazê-lo.

Tive uma infância invejável. Cresci na zona rural de um lugarzinho esquecido no mundo, bem longe do que chamam de civilização. Um lugarzinho abençoado, onde tive espaço para ser criança, subindo em árvores, deslizando em papelão pelos barrancos, correndo livremente pelos campos que se estendiam convidativos até a linha do horizonte, tomando banho de sanga... Enfim, muito brinquei nesta vida. Muito mesmo.

Além disso, se não tinha os livros impressos, tinha-os editados diretamente das mentes férteis de meu pai e meu avô: como contavam histórias aqueles homens! Lembro das noites à luz de velas, quando faltava energia elétrica no interior, e os patriarcas  sentavam-se conosco em roda, narrando histórias fantasiosas de seu tempo de guri. Eu acreditava piamente em tudo: eram heróis os meus ascendentes, exímios campeões de MMA no colégio, quando o esporte ainda nem estava na moda. Como eu os admirava! Hoje sei que eram apenas brigões e contadores de vantagens...

E as histórias de assombração? Essas eram as preferidas nas noites de lua cheia. Não sei se tinham a intenção de entreter ou apenas de manter a filharada quieta, até o retorno da energia elétrica... Fato é que não se ouvia um pio, era só criança grudada nos adultos, com os olhos esbugalhados. Fizeram terrorismo comigo? E deve ter dado muito certo, pois hoje em dia pouca coisa me assusta.

Passados tantos anos daquela  época,  residindo no coração de uma selva de pedras, entendo que aquela foi a primeira leitura que me foi oferecida, e a mais importante de todas: a leitura de um mundo que me dava asas para voar. Descobri, primeiro, o mundo. E aos seis anos, ao conhecer as letras, ganhei as asas. Saí voando por aí, e voando estou até hoje. Minha família tem tudo a ver com isso, embora jamais tenha me dado livros de presente.

Cresci, estudei, casei, tive filhos... De repente, me vejo criança outra vez, empreendendo viagens inenarráveis! Mas desta vez vou como acompanhante, ocupo o banco do carona: os aventureiros pelo campo das letras são meus filhinhos!

Não sei se o fator é genético, mas eles amam viajar – literariamente falando. Todos eles, os três.  Tanto quanto eu, ou ainda mais... Surpreendem-me a cada dia com suas descobertas, é como se estivessem o tempo todo com a mochila nas costas, prontos para desbravar novos territórios. E eu, super parceira, topo todas!

Diferentemente de mim, crescem cercados de livros. É um excelente presente de aniversário, eles adoram! Não me preocupo em comprar os mais caros, o foco que tento passar a eles é outro: o que interessa são as histórias, venham elas em qualidade pop-up ou impressas em papel reciclado.

Precisamos ler mais para nossas crianças e também ler com nossas crianças; é fundamental contar-lhes boas histórias e permitir que nos contem sua interpretação dos fatos narrados. A leitura e a contação de histórias são atividades para serem feitas em família!

Encerro este texto, compartilhando uma experiência desta semana: refugiei-me em meu quarto para ler um livro que não me larga – aquisição recente, na última edição da Feira do Livro de Porto Alegre. Normalmente leio na presença dos pequenos, minha concentração me permite espiar crianças com um olho e destrinchar capítulos com outro...

Desta vez, porém, excepcionalmente, optei pela reclusão. Sem êxito algum, pois fui seguida. Encerrei a noite de leituras com três companheiros, cada qual com seu livrinho, conforme sua preferência literária, todos empilhados sobre  minha cama.

No fim das contas, fiquei confusa: não sei  se as lágrimas que vieram foram de emoção, motivadas pela excelente obra que eu tinha em mãos, ou se de orgulho, pelos pequenos leitores que  tinha ao meu lado. Eu, particularmente, adoro não ter privacidade alguma para minhas leituras.

Suzy Rhoden

sábado, 2 de novembro de 2013

Maternidade: Quantos Filhos Devo Ter?


Dia desses, mostrava eu a foto de meus três lindos filhos para um amigo. Com ar de espanto, o amigo questionou: os três são teus?! E, com a sensibilidade que lhe é peculiar, acrescentou: “Não entendo como alguém pode ter três filhos nesta época, inteligente mesmo é quem tem um só! Filho único é garantia de paz para os pais, que não precisarão conviver com brigas de irmãos em casa, e garantia de sucesso para a criança, que poderá ter tudo na vida, pois os investimentos dos pais serão sempre somente para ela! Um filho único é mais feliz, com certeza.”

Não contestei a opinião do amigo. Silenciei, dei por encerrado  o assunto. Talvez ele tenha pensado que, com sua fala, esgotou meus argumentos. Afirmo aqui, porém, que a realidade passou muito longe disso: sou convicta em relação ao assunto  e não há opinião pessoal que possa mudar o que a experiência real, com três crianças em casa, tem me acrescentado. Silenciei por respeito a esse amigo, um tanto mais velho do que eu, que nesta vida não foi abençoado com posteridade. Não queria  ferir seus sentimentos.

O referido amigo não é o único, muitos são os que tomam a liberdade de palpitar o número de filhos que devo ter – ou melhor, que devo não ter. Realmente não me incomodo, é mania de brasileiro achar que o que é bom para si será invariavelmente bom para o outro também. Lido bem com isso, ouço e replico ou ouço e descarto. Mas, confesso, ainda me impressiono com a motivação dos palpites: $$$$.

Bem sei que “é caro manter três filhos”. Acontece que os meus não vieram a este mundo com um preço: podem custar quanto quiserem, afinal a alegria que me concedem vale muito mais do que qualquer gasto que eu possa ter com eles! “Não terão a melhor escola”. Depende do ponto de vista. Para mim, a melhor escola ainda é o lar e a educação que se dá a eles em casa. O restante, é um mero complemento.

Nem mesmo a mais prestigiada instituição terá o poder de conceder felicidade e sucesso a minha prole se, antes de tudo, eles não souberem ser gratos pelo  que possuem. Serão bem-sucedidos profissionalmente, talvez, mas estressados e incapazes de administrar suas próprias emoções em momentos de adversidade. E, num belo dia, surtarão e jogarão pelo ralo anos de estudo na mais renomada universidade do país!

“Agora eles são crianças, mas crescerão e darão trabalho!”, dizem as bolas de cristal por aí... Se fosse um só não me daria trabalho, é isso? E se eu tiver trabalho, que problema há nisso? Não botei filhos no mundo para me jogar na rede e esperar que se criem à revelia: escolhi tê-los porque me apraz o exercício divino da maternidade, não importa o quanto de trabalho isso signifique. Eles são o melhor e o mais doce investimento da minha vida, e nada neste mundo vai mudar esse sentimento inabalável dentro de mim.

“Encerrou a fábrica, né?” Talvez não, ainda estamos decidindo. “O quê?!” O espanto geral da nação é tão grande que antevejo os moços de branco numa correria louca, com suas camisas de força, para cercear minha liberdade de ter uma numerosa posteridade! Insana, louca, inconsequente.

Ok, não iremos do oito ao oitenta, devo esclarecer: é preciso muita, mas muita sabedoria e cautela na decisão de se ter um filho. Não posso me conceder o direito de colocar filhos neste mundo sem as mínimas condições de criá-los, nutri-los, amá-los e educá-los. Há um conjunto de fatores que devem ser observados, não fazê-lo constitui negligência e inconsequência dos pais – é crime! Mas SE tenho essas condições, embora não seja milionária, tenho todo o direito de decidir quantos filhos terei.

Por fim, respondo agora ao amigo que me recomendou um filho único: quais, do meu trio, você sugere eliminar da família? Pois preciso imaginar a minha vida sem dois deles, sem as experiências insubstituíveis que vivi individualmente com eles... Pode existir sugestão mais estúpida do que essa a uma mãe FELIZ de três crianças adoráveis?! Francamente, amigo, foi mancada, foi bola fora...

Enquanto alguns reduzem a maternidade a uma cifra ($), eu a considero sagrada, um privilégio divino, a maior de todas as bênçãos almejadas. Realmente não tem preço. Sou triplamente abençoada!

“Quando a verdadeira história da humanidade for plenamente revelada, será que ela apresentará os ecos de tiros de armas de fogo ou o som formador de caráter das cantigas de ninar? Os grandes armistícios realizados pelos militares ou a pacificação efetuada pelas mulheres no lar e nas comunidades? Será que o que aconteceu nos berços e nas cozinhas há de se provar mais determinante do que o que aconteceu nos congressos?” (Neal A. Maxwell)


Suzy Rhoden

sábado, 19 de outubro de 2013

A Fotografia


Um punhal não teria sido mais certeiro do que aquela fotografia entre os pertences do marido. O sorriso perfuro cortante atingiu-lhe em cheio o coração – não havia nele sinais de desdém, o que mais a machucou. Havia apenas supremacia. Como alguém que sorri do passado encarando o futuro, disposta a viver como um eterno presente na vida daquele para quem, naquele instante, sorria.

Odiou à primeira vista aquela desconhecida tão familiar. Sabia bem de quem se tratava... O gosto amargo da traição tocou-lhe os lábios, enquanto dos olhos vazaram litros de ressentimento. Amava-o, isso não era o bastante? Dedicara a ele cada um de seus dias; a fidelidade de seu corpo e de sua alma; a intensidade de seus pensamentos. E ele fora apenas metade, todos esses anos!

Guardava, ainda, a lembrança de uma mulher que o rejeitou. De uma garota estúpida que pisou, sem piedade, em seus mais nobres sentimentos. E partiu, sem olhar para trás, deixando nas mãos que ofereciam amor apenas um maldito retrato.

Ela – a esposa devotada – o  encontrara mutilado por dentro. Juntou-lhe os cacos, mostrou-lhe outra forma de amar: com um amor maduro, alicerçado na amizade e no companheirismo, que encontra a própria felicidade no altruísmo. Sereno como o raiar de um novo dia.

Mas ele insistia em voltar os olhos para o crepúsculo de sua vida. Buscava a que, talvez, tenha apontado  estrelas, mas  deixara noite e solidão em seu lugar. Por que, afinal, ele  procurava por quem se foi sem sequer dizer adeus, quando tinha ao  lado alguém que esquecia de si  para agradá-lo e fazê-lo feliz?! Por quê?! Um milhão de inconsoláveis por quês...

Estraçalhada, sufocou um gemido no peito, enquanto o corpo pendia para a frente, contraído pela dor repentina. Uma dor da alma, aguda e dilacerante, a rasgar-lhe os sonhos e as esperanças que alimentou. Susteve-a a escrivaninha, onde firmou os braços em busca de apoio, carente de alento – a mesma  escrivaninha que, cinicamente, ocultara o sorriso de  outra em seus compartimentos.

Num esforço supremo, juntou a  porção de dignidade que lhe restava e premeditou a cena final. Sabia de antemão que seria julgada imatura e que sua decisão seria vista como um ato de desespero. Mas não importava, estava disposta a acabar definitivamente com aquele fantasma, podia vislumbrar-lhe as cinzas inglórias! Agiu.

Como que atraído pela tragédia, que se dissipava tal qual fumaça no ar, o marido entrou no escritório para ver extinguir-se a última chama. Era tarde  para resgatar do incêndio de ciúmes da esposa o sorriso que, por tantos anos, o hipnotizou.

O passado finalmente encontrou seu lugar na linha do tempo: parou de provocar o futuro, tornou-se incapaz de assombrar o presente. Ficou para trás, fincou raízes na Terra do Nunca e ali jaz, esquecido.

Marido e mulher não disseram palavra, não foi necessário. Abraçaram-se. Morreu, com a última chama, a paixão – ela foi sacrificada. Para que pudesse nascer, pleno de sinceridade, o amor – ele merecia existir!
Suzy Rhoden



terça-feira, 15 de outubro de 2013

Curativo


Um de meus livros preferidos apresenta a Morte como narradora. A simples alusão ao nome da indesejada personagem já projeta na mente humana a tradicional imagem cadavérica, escondida sob capuz negro, carregando uma gadanha às costas. Antipatia gratuita é o principal sentimento evocado – que passe longe essa senhora!

 Não é assim, porém, que a narradora de A Menina que Roubava Livros descreve a si mesma: “Quer saber a minha verdadeira aparência? Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo”...

Não pude evitar a estranha comparação: profissionalmente falando, não importa o quanto gentil e agradável  me apresente, serei vista e lembrada como aquela que revirou feridas e que provocou novas velhas dores. Minha sala é o último recurso do ser humano, local evitado sob qualquer circunstância.

É mais fácil fingir que o ferimento cicatrizou, jogar um band-aid por cima dele
 e seguir a vida. Por dentro, continua a corroer a infecção que mina o corpo, a mente e a alma. Eu entro na história para bagunçar tudo, arranco o band-aid e, num choque absurdo de realidade, coloco o dedo nas feridas. Fria e imparcial – essa sou eu, vista do outro lado da mesa. Mas não faço mais do que escancarar uma história já escrita, para que seu próprio autor a leia – providencio o indesejável espelho!

A Morte de meu livro menciona a guerra como um insaciável chefe, a repetir sem parar: “apronte logo isso, apronte logo isso.” A funcionária aumenta o trabalho, faz o que tem que ser feito, mas o chefe não agradece: pede mais.

Não é assim também em nossos dias? Não se aplica o mesmo vocábulo  para descrever a luta diária da população de bem por sua sobrevivência neste mundo onde impera a criminalidade? Acordamos todos os dias e saímos para a guerra, orando para retornarmos vivos para nossos queridos – e para que eles tenham a bênção de voltar para nós! Está aí meu chefe insaciável, o multiplicador de feridas na sociedade e, consequentemente, de seres indefesos dos quais  tenho que arrancar o inútil curativo, como se a mim não coubesse, não fosse conveniente a compaixão.

Minha mente se volta para Lucy neste momento. Mulher de seus quase 50 anos. Adentrou minha sala muito segura, envolta em ataduras, jurando ter dado a si mesma o tratamento adequado.  Saiu dali com 9 anos de idade, chorando compulsivamente enquanto era espancada, desprotegida e abandonada pela mãe. A mesma mãe de quem Lucy, na vida adulta, veio a cuidar no leito de morte e pela qual lutou pelos direitos de justiça e dignidade. Escancarei a ferida, coube a mim mexer nela. Meu chefe insaciável ditou as regras.

Tal qual a Morte retratada em meu livro, sinto-me por vezes “Abrindo caminho por tudo aquilo. Na superfície, imperturbável, resoluta. Por baixo, abatida, desatada, desfeita”. Não é fácil lidar com a dor do outro. Não é mesmo. Mas é nobre.

É necessário. É imperativo. É imprescindível. Para que haja esperança de justiça na terra, diante das barbáries que fazem gemer este planeta: os crimes praticados contra  vulneráveis. Para que a justiça tarde, por vezes – não sou senhora do Tempo – mas definitivamente não falhe!

“Talvez você argumente que eu faço a ronda em qualquer ano, mas às vezes a raça humana gosta de acelerar um pouquinho as coisas.” Tempos de guerra, tempos de violência contra seres que deveriam receber apenas proteção... Tempos de feridas que custam a cicatrizar! Sinto muito, Lucy.
Suzy Rhoden






domingo, 29 de setembro de 2013

Entre a Ficção e a Realidade



Maria Eugênia fechou o antigo diário, cheio de confidências, e aconchegou-o junto ao peito, num impulso protetor. Protegia as lembranças do passado; salvava, intocado, um grande amor.

Os filhos e os netos já tinham, diversas vezes, virado aquelas páginas amareladas. Nunca viram nada além de uma história tradicional, de uma moça que se casa jovem, segundo os padrões de sua época, mantendo fielmente os princípios conservadores de sua religião. Sabia não ter-se casado por imposição dos pais, e sim ter escolhido os ditames dessa tradição vigente. Tinha forças para rebelar-se, mas não quis fazê-lo. Casou-se, teve filhos, netos, enviuvou.

Só então subiu ao sótão para resgatar as entrelinhas de sua história. Aquelas que ninguém nunca leu, mas que sempre estiveram ali, se insinuando sobre o texto principal. Com grande esforço, Maria Eugênia controlou as palavras. Escreveu com a razão, sufocando corajosamente os sussurros do coração. Não houve um deslize sequer: escreveu a ficção de sua vida, guardou para si a história real.

Há muitos anos, houve um grande amor. Chamava-se Vicenzo. Disfarçado de amigo, ocupou várias páginas de sua vida. Preencheu pensamentos e sentimentos também. Mas a jovem nunca deixou que ele soubesse o quanto significou, resguardou-se.

Ele, por sua vez, declarou o amor que sentia. Revolucionário por natureza, sabia não preencher os requisitos impostos pela época, mas isso não o deteve ou silenciou. Lutou enquanto pôde. Não aceitava o conservadorismo e não acreditava na prática de casamentos somente entre os de mesma religião.

Por fim, declarou-se a guerra de ideais. Uma guerra silenciosa, corroendo dois corações. Maria Eugênia, convicta, defendia padrões aprendidos no berço, sob os quais educaria os próprios filhos, legado a ser transmitido de geração em geração. Vicenzo, revolucionário, negava-se a pautar a vida por um molde, não se dispôs a fazê-lo nem mesmo para agradar a amada. Nenhum cedeu. O amor perdeu.

Maria Eugênia casou-se conforme os padrões de sua religião. Vicenzo seguiu gritando ao mundo sua rebeldia contra os costumes da época, mas a jovem senhora já não se permitia ouvir seus gritos, suas reivindicações. Era fiel a princípios, sacrificava sentimentos. Escolheu e viveu leal a sua escolha. Desviava para as entrelinhas qualquer indício de emoção, como seguiria um trem descarrilhado rumo ao desastre. Ela, resignadamente, mantinha a linha e a compostura, estação após estação.

Sessenta anos se passaram de um viver premeditado. Não se é infeliz vivendo assim: Maria Eugênia construiu a família estável que sempre sonhou, fundamentada em padrões, em convicções. Arrependeu-se da escolha? Isso é algo que não poderia dizer, que ela própria jamais poderia saber ao certo.

E Vicenzo? Viveu para sempre nas entrelinhas, como o verdadeiro e único grande amor de sua vida: um amor preservado, que não sofreu os desgastes da convivência diária; que não se expôs às cobranças típicas dos relacionamentos humanos. Talvez por isso, justamente, tenha sobrevivido, lindo e encantado, sem jamais ter sido profanado.

Nesse instante, o toque da campainha feriu os ouvidos de Maria Eugênia, conduzindo-a de volta a sua vida fictícia. Com o diário ainda em mãos, espiou da janela do sótão... E então recuou, chocada, deixando o diário querido fugir das mãos e estatelar-se contra o chão, tendo as páginas reviradas.

Seria possível, aos oitenta anos, que a realidade viesse resgatá-la?!

Nunca é tarde para o amor. Em algumas histórias, o príncipe encantado vem a galope... em outras, vem de bengala!
Suzy Rhoden


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Aos Chatos, Ranzinzas e Carrancudos


Não adianta, não escapamos deles. Os carrancudos. Estão por toda parte, infestando este mundo com seu mau humor. Na família, no condomínio, na comunidade, no trabalho, na faculdade, na igreja... há sempre pelo menos um deles! 

Mas o normal, para nosso suplício, é o ataque em bando, exalando azedume por onde passam. Pois um mau humorado não se satisfaz com o próprio mau humor: enche  a paciência de seu próximo até vê-lo rosnando pelos cantos, no limiar da insanidade. Feita, portanto, mais uma vítima, eles seguem se multiplicando e poluindo o ar, através de suas energias negativas, que nós de bem com a vida precisamos para respirar. 

Importante saber identificá-los - para mantê-los longe. No trabalho, fuja daquele que, com a testa franzida, se desvela em interjeições do tipo “droga!”, “que saco!”, “que raiva!” a cada três segundos do dia, dando a entender que, seja lá o que  tenha a fazer, a atividade é um tédio, uma chateação. Se usasse metade do tempo que passa vociferando para se concentrar em seus afazeres, seria bem mais produtivo e realizado!

Para azar da população, mau humor não é critério eliminatório em concursos, de modo que frequentemente vemos os queridos atuando no funcionalismo público. Pior do que ser atendida pelo tipo, é ser colega dele. Pois, além de oferecer  péssimo atendimento, fica irritado se você age de maneira diferenciada: quer lhe dar dicas – que você não pediu – sobre como ser direto (tratar mal), específico (grosso) e objetivo (botar a pessoa a correr). Afinal, o intento dele é livrar-se o mais rápido possível das pessoas e não exatamente auxiliá-las em suas necessidades. E consegue, pois ninguém aguenta ficar perto por muito tempo...

Na verdade, penso que eles deveriam vir com uma plaquinha na testa, com os dizeres: PESSOA DE MAL COM A VIDA, MANTENHA DISTÂNCIA. Mas isso requer colaboração do ranzinza, e, seja lá com o que for, algum ranzinza colabora?! Não, nunca. Por isso sugiro algo que é praticamente um projeto de lei: após a identificação do mau humor ambulante, reivindico o direito de solicitarmos medidas protetivas de urgência! Tudo nos  padrões Maria da Penha, garantido o afastamento mínimo de 100 metros.  Ooooh, que maravilha seria viver,  dizia o inspirado Tom Jobim...

Mas, como a vida nos impõe a convivência, resigno-me ao que posso de fato fazer: sou a pedra no sapato desses seres patéticos. Respondo aos resmungos azedos com expressões irritantemente açucaradas, do tipo: um belo dia pra você também! E lanço um sorriso de orelha a orelha, com olhinhos brilhantes. A tática, afirmo categoricamente, é insuportável para um ranzinza nato, pois se tem algo que o afugenta acuado são as manifestações  espontâneas de vida alegremente vivida!

Não é nada pessoal, mas carrancudo comigo não tem vez! Se quer reclamar da vida nos meus ouvidos, terá de aguentar meu humor sempre em alta, meu riso fácil e minha felicidade genuína. Pois gosto mesmo é de gente com a energia do sol. Que não se entrega diante da primeira tempestade, não perde o brilho. Se está chovendo, dança na chuva! 

Entendo, naturalmente, a depressão enquanto patologia - eu mesma já vivi meus dramas. Mas para isso existe amigo, psicólogo, psiquiatra, terapeuta, etc. Quem dispensa tal auxílio, é porque se sente autossuficiente. Então, com licença, melhora a carranca e vem pra vida! 

Rir ainda é, e sempre será, o melhor remédio. E é de graça, não custa nadinha!


Suzy Rhoden

domingo, 25 de agosto de 2013

Chove Chuva...


Na falta de um barco, para dar um passeio pelas ruas alagadas de minha cidade, resigno-me ao aconchego de meus aposentos, acompanhada de um prato de bolos fritos e chimarrão. Um pouco leio e um pouco escrevo. Coisas típicas de um dia de chuva, afinal.
E, nesse intercalar prazeroso entre comer-beber-ler-escrever, sobro em pensamentos. Talvez por isso não gostemos muito da chuva, quando vem por dias seguidos: somos convidados a mergulhar em profundas reflexões – será por mera falta de outras opções?! E esse mergulho abre o baú tanto para boas, quanto para amargas recordações.
O engraçado é que num instante perdemos o controle, o fio do pensamento. Ele se vai, e nós ficamos. Quando caímos na real, o rosto está molhado por lágrimas doídas de quinhentos anos atrás, como se naquele momento sentíssemos, com a mesma profundidade, aquelas dores de tantos anos passados. Dia de chuva é um perigo, é um flerte com o precipício!
Um minuto depois, contudo, estamos sorrindo com a lembrança dos inesquecíveis banhos de chuva – os divertidos, e também os que nos fizeram pagar mico! E aí o sorriso vira gargalhada, pois entre quatro paredes ficamos à vontade para soltar a risada, aquela entalada há tempos na garganta, que na hora exata o vexame não permitiu sair. Rimos de nós mesmos e de nossas presepadas.
Mas, com a lembrança da gafe, vem a mente a fisionomia da testemunha ocular dos fatos: a Poripopilda, nunca mais a vi! Por onde anda essa criatura?! Não deu mais notícias, deve estar casada, muito ocupada, mãe de uns sete filhos para justificar o sumiço... Poderia procurá-la no Facebook! E correr o risco de vê-la postar, imediatamente após o tradicional ‘oi, quanto tempo!’, um ‘lembro como se fosse hoje daquele seu mico impagável!’, E segue o relato minucioso do mico, pra toda web ler, pois a Poripopilda, muito ocupada com a filharada, não teve até hoje tempo para atualizar-se das configurações e descobrir que é possível – em tese – um mínimo de privacidade nas redes sociais – jura?! É, deixa a Poripopilda só nas lembranças mesmo...
E assim vagueia o pensamento, sem rumo certo, à procura de um pouco de sol possivelmente. E assim vagueio eu, tropeçando nas palavras, atrás desse inconstante... que por sinal, acaba de fugir outra vez! Que vá – cansei-me da brincadeira. Aguardo seu retorno, atracada em um bolinho de chuva. Pois comer é o que há.
“Chove chuva, chove sem parar...” (Jorge Ben Jor)

Suzy Rhoden

domingo, 18 de agosto de 2013

Amor Não Correspondido


Só entende a dor de um amor não correspondido quem bebeu da taça da rejeição até a última gota. Não sorvi dessa taça. Antes tivesse sorvido! Pois o sabor é amargo, contudo fortalecedor: uma espécie de fortificante, de gosto duvidoso, mas de efeito visivelmente positivo para o restante da vida. Sofrer uma rejeição é lição prática de autossuficiência emocional, garante imunidade contra decepções futuras. Para quem sobrevive, naturalmente.
Como disse, não bebi dessa taça. E não me orgulho disso. Pois, para mim, sobrou aquilo que realmente mata, o veneno letal: sou aquela que rejeitou o amor gratuito e desmedido. Sou a vilã, a megera da história.
Voltemos no tempo...
Ângelo e eu nos conhecemos na faculdade. Sabe aquela amizade que cria raízes no primeiro minuto de conversa? Pois é, foi assim. A sensação era de  nos conhecermos há anos, décadas, de outros estágios de vida. Tínhamos assunto pra virar a madrugada, indo de extremos como a Literatura – minha área – à Física, conteúdo que ele dominava, sendo estudante dedicado de Engenharia.
Ângelo era, sob todos os aspectos, o homem perfeito. Perfeito demais, eu diria. Ouvia atentamente tudo que eu dizia, valorizava minhas ideias, era parceiro para atividades culturais ou esportivas, viagens inusitadas ou o que quer que desse na minha cabeça. Era alguém com quem contar em todas as circunstâncias, tive muitas provas disso.
Tornamo-nos grandes amigos primeiro, depois ele se tornou meu confidente. Esse foi nosso erro fatal. Não consigo acreditar hoje no quanto feri seu coração, sem saber que minhas confidências o despedaçavam. Mas foi exatamente assim.
Em algum momento da amizade, contei entusiasmada para Ângelo que estava namorando. Como sempre, ele me parabenizou e apoiou. Desejava o meu bem, a minha felicidade, isso era visível. Quando meu romance começou a virar história de terror, foi no ombro de Ângelo que chorei. Ele nunca reclamou, esteve sempre a minha inteira disposição. Nunca interferiu, nunca questionou minhas escolhas, sempre me respeitou integralmente.
O tempo passou, contudo, e nos separou: Ângelo, já formado,  foi trabalhar em outro estado, bem longe da nossa cidade universitária. Mas, para minha alegria, era freqüente sua presença em Santa Maria, de modo que nossa amizade não sofreu os efeitos da distância.
Numa das visitas de meu amigo, dei-lhe a notícia: fim de namoro, sem volta. Ele me ouviu calado, como geralmente fazia, e partiu. E uma semana depois retornou.
Fiquei surpresa, atravessar tantos quilômetros por duas semanas seguidas pedia um bom motivo. Ele disse que me explicaria durante passeio pelo Campus, para o qual me convidou. Cometi o erro de aceitar o convite.
Por vezes, a ignorância é nossa melhor opção. Mas a mim coube o conhecimento de um segredo aterrador: meu melhor amigo declarou-se apaixonado por mim, há tempos, há anos, vivendo em silêncio a intensidade de seu amor.
Pensei nas vezes em que chorei em seu ombro, aos tropeços com um namoro insatisfatório... Dei-lhe as chances para revelar o que sentia, mas ele, numa atitude admiravelmente altruísta, preferiu manter sigilo de seu amor a influenciar minhas escolhas. Permitiu-me tomar decisões sem interferências, não se aproveitou de minhas fragilidades momentâneas. Foi mais leal à amizade do que a si mesmo e aos seus reais sentimentos.
Não consegui dar resposta imediata, pedi o famoso tempo para pensar. Recebi esse tempo juntamente com flores, poemas, canções. Fui cercada pelas manifestações mais sinceramente românticas que já experimentei em toda minha vida, elevada à condição de musa inspiradora, princesa de conto de fadas. Fui amada.
Mas escolhi ser a bruxa malvada, aquela que oferece a maçã envenenada. Depois de tudo que ele fez por mim, retribuí seus ternos sentimentos com um ‘não’ gelado. Como poderia ser diferente?!
Como falar um ‘não’ sorrindo, com os olhos brilhantes e a respiração ofegante de felicidade?! Proferi um ‘não’ seco e direto. Redondo e taxativo. Como a pior vilã da melhor novela. E... não gostaria de confessar isso, mas a culpa me obriga a fazê-lo: tudo aconteceu no dia dos namorados.
Foi o fim de uma amizade perfeita. Foi também o meu fim, pois Ângelo sobreviveu, mas eu morri. O veneno que fiz com que ele ingerisse surtiu efeito em mim: convivo com o remorso.
Não me arrependo da decisão, era a única possível naquelas circunstâncias. Eu amava Ângelo como um irmão. Mas todos os dias discuto a relação com este meu coração estúpido: o que você quer da vida, seu inconsequente? Prefere se entregar a amores bandidos a devotar afeição a quem só te quer bem?! Masoquista!!!
E assim, estúpidos, são quase todos os corações...

Suzy Rhoden

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O Diário de Elisa


Elisa revirou-se na cama mais uma vez e, por fim, desistiu de dormir. Acendeu a luz de cabeceira. O sono não viria naquela noite, fora expulso pelos milhões de pensamentos que borbulhavam em sua mente.
Reconhecia a ansiedade - aquela intrometida, diagnosticada há dez anos. Mas, ao contrário daquela época sombria de sua vida, agora sabia lidar bem com a intrusa: transformara-a em aliada, por vezes até mesmo em uma companheira.
A jovem pensava nas voltas que dá a vida. Movida por esse pensamento, estendeu a mão e puxou para perto o antigo diário. Um marcador, entre uma página rabiscada e outra em branco, situava Elisa no tempo presente, entre o passado e o futuro.
Ali estava ela, prestes a avançar, traçando novas linhas. Contudo, havia um conflito: e se essas novas linhas significassem literalmente um retorno ao passado? Estaria preparada para reescrever  sua história? Passá-la a limpo, com nova data, mas nas mesmas circunstâncias antigas?
Com o coração aos pulos, voltou no tempo virando páginas. Sabia bem onde queria chegar: às páginas borradas com lágrimas e preenchidas com letra tremida. Quanta dor ali guardada! Sofrimento tão intenso que transbordou da alma, tomou forma de palavras, disfarçou-se de obra literária. A coletânea era tão melancólica que recebeu um título sugestivo: Lembranças de Morrer.
Mas ela não morreu. Numa determinada página, na sequência dos dias, a letra ainda tremia, mas já não estava borrada. E ali dizia: “Adeus, deserto! Vou-me embora e não retorno. Deste lugar miserável, não quero nem o pó nos meus sapatos!” Colocou o diário embaixo do braço e foi, para nunca mais voltar.
No novo lar, Elisa viveu novas histórias – nem todas com final feliz. Porém, ao invés de tremer a letra e manchar as páginas, escrevia cada vez com mais determinação e capricho. Com o passar do tempo, aprendeu que desesperar-se não garantia alteração no enredo; chorar não mudava para melhor o desfecho. Ao invés disso, percebeu que cada desafio que enfrentava e registrava, fazia com que escrevesse – e vivesse – com mais segurança. Em suma, cada dissabor contribuiu para seu aperfeiçoamento.
Até que, num inesperado dia, foi enviada pelo destino de volta ao começo. Como assim, voltar para o deserto?! Somente uma criatura insana aceitaria tal designação. Elisa tinha sobriedade suficiente para dizer a si mesma e ao mundo que não, ela não retornaria!
No entanto, a jovem tinha também maturidade para entender o desafio que a vida lhe propunha: sair do deserto foi apenas a tarefa inicial, um preparativo para a grande e verdadeira missão que lhe cabia. Retornar e transformar aquele lugar sombrio em um lar seria a verdadeira superação.
Elisa podia negar para o mundo, mas intimamente sentia: era  hora de regressar. Ainda assim, tinha liberdade de escolha e, se quisesse, podia seguir em frente sem olhar pra trás, protagonizando novos capítulos de novas histórias. A decisão seria exclusivamente sua.
Pensativa, Elisa localizou o marcador e retomou a última página preenchida de seu diário. Seus dedos avançaram sobre o criado-mudo à procura da caneta: tinha coisas surpreendentes a registrar naquela noite. Tinha uma vida para reescrever.

Suzy Rhoden

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Iracema, a Mulher Iracunda


Iracema, mulher de temperamento forte, dispensa descrição física: ninguém se dá conta se é gorda ou magra, alta ou baixa, feia ou bonita, pois seu gênio sempre exaltado se sobressai a qualquer outra qualificação que possa ser feita de sua pessoa.
Como toda mulher geniosa, casou-se com homem que não tem boca pra nada: Pacífico é seu nome.
O pobre vivia como parte da mobília, que nem para decorar servia naquela casa. Estava mais para objeto de tropeço, um móvel velho e inapropriado, que por caridade não se jogava fora. É inútil e desnecessário – resmungava  Iracema pelos cantos.
As rixas de Iracema com o esposo começaram cedo, na própria noite de núpcias. Botou o marido dormir no sofá, pois não gostava do jeito que ele se enrolava como uma cobra para dormir. Não tinha postura, elegância, quando entortava daquele jeito a coluna. E ela, mulher fina por natureza, não se submeteria as manias de solteiro do marido. Ou ele dormia retinho como uma tábua, ou desocupava a cama do casal, pois aquilo não era ninho.
E em ninho transformou-se o sofá da sala, por trinta longos anos.
Em uma semana de casamento, Iracema já proclamava uma lista reclamações, todas faltas de natureza gravíssima:  portas dos armários abertas,  potinhos destampados na geladeira, toalha sobre a cama, cobertor esquecido no sofá,  acento do vaso não levantado,  meias no chão da sala,  barbeador em cima da mesa da cozinha... Pacífico pedia xingamentos! - bufava Iracema pela casa.
A mulher, soltando fogo pelas ventas, botava o dedo na cara do marido e exigia retratação imediata, pois acaso pensava que era sua escrava? O vivente não argumentava, não se rebelava, não propunha revolução interna contra a ditadura da mulher, aceitava-lhe as imposições e tratava de botar as coisas em ordem na casa.
Mas não importava o quanto Pacífico tentasse agradar, a implicância de Iracema só aumentava: vociferava quando o coitado, distraído por um instante, fazia algum ruído ao sorver a sopa! Parava o jantar e dava início ao sermão. Pacífico afundava na cadeira, e a comida esfriava.
Mas a pior de todas as crises se deu no dia em que Iracema pegou o marido no flagra, chupando uma laranja na sacada: como ele ousava enfiar a cara dentro da laranja ao invés de levar, elengantemente, gomo por gomo até a boca?! Iracema surtou, correu com o marido para os fundos de casa, completamente irada!
A história só mudou quando, num inspirado dia, Iracema encafifou que Pacífico deveria ter sido pastor. Mas de que jeito, se nem ler a bíblia aquele imprestável lia! Ela, muito beata, naturalmente passava os dias com o livro sagrado aberto sobre a mesa, discursando a respeito dele. Não existia mulher mais religiosa... na teoria!
Pacífico, para silenciar a mulher, fez o que sempre fazia: acatou a ordem, pegando a bíblia para lê-la. Mas de imediato mudou o semblante daquele homem. Os lábios, calados com expressão de muxoxo, ganharam subitamente a expressão de segredo. Pacífico passou aquele dia inteiro em profunda meditação.
Iracema percebeu a mudança e, claro, se irritou. Xingou o esposo, chamando-o de fariseu hipócrita, que lia e não cumpria com a palavra – pois continuava com os mesmos terríveis defeitos!
Pacífico não se alterou, fora milagrosamente salvo, encontrara a cura para seu mal. Olhou para a esposa furiosa e sorriu. Sabia exatamente o que fazer, ou melhor, o que não fazer: não fez as vontades de Iracema pela primeira vez na vida.
Iracema foi da ordem a suplica, pediu, mandou, implorou, gritou; por fim, recorreu ao histerismo, mas não adiantou: Pacífico não se moveu do lugar, e o sorriso misterioso de seu rosto não se apartou. Só restou à mulher, vencida, subir para o quarto, esperançosa de que o raiar de um novo dia trouxesse de volta seu bom e velho – e manipulável – Pacífico.
Na manhã seguinte, Iracema desceu as escadas resoluta, pronta para mostrar quem era que mandava naquela casa. Iria surpreendê-lo, arrancando-lhe os cobertores, e com o dedo em riste declarar o ser fracassado que ele era.  Passou a noite elencando os defeitos do marido, sabia-os de cor para jogar-lhe na cara. Ele não passava de um fraco, jamais teria  coragem para enfrentá-la!
Mas, ao erguer os cobertores, deparou-se com o  sofá vazio, sem vestígio  de Pacífico. Sobre o móvel, restava apenas um breve bilhete:
Provérbios 21:19
Intrigada, andou para a mesa onde permanecia aberta a bíblia, por trinta anos,  na mesma página de sempre. Para sua surpresa – pois nunca teve antes a curiosidade de ler o livro sobre o qual tanto discursava – percebeu  tratar-se de Provérbios, e num instante localizou o versículo 19, lendo-o em voz alta:
“É melhor morar numa terra deserta do que com a mulher rixosa e iracunda”. Um ‘OBRIGADO!’ rabiscado ao lado deixava clara a conclusão do marido.
Iracema poderia ter morrido de raiva naquele mesmo momento, mas o destino reservou algo ainda mais doloroso para  seus dias:
Iracema foi infeliz para sempre, pois não pode uma mulher rixosa e iracunda ser feliz sem um homem pacífico para atormentar.
Suzy Rhoden


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