terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Reação



A polícia orienta: jamais reagir a um assalto. Sabemos exatamente o que fazer numa situação indesejável dessas: permanecer calmos, não fazer nenhum movimento brusco, permitindo ao agressor levar o que quiser, desde que ele nos poupe  a vida. Essa é a teoria. Mas na prática somos uma caixinha de surpresas para nós mesmos, e a verdade é que não sabemos ao certo como reagiremos.

Com as tragédias e intempéries do destino, não é diferente. Apontamos soluções, damos palpites, suportamos qualquer fardo... Quando quem o carrega é o outro! Pois quando cabe a nós  sermos pacientes, mansos e longânimes, a história não é bem assim, afinal temos nossos motivos para sairmos dos trilhos... Não é esse nosso irrefutável argumento?

Tenho analisado este nosso poder de reação desde a tragédia de Santa Maria. A reação esperada de minha parte, por estar diretamente ligada àquela cidade, seria usar a palavra, que me é tão preciosa, para gritar a dor de muitas mães, ou quem sabe para dar voz à indignação de toda uma população. Mas, estranhamente, ecoou na internet o meu silêncio. Não consegui escrever, por dias, por um mês. Não quis querer escrever, minha solidariedade naquele momento não coube em palavras, encerrou-se em meu coração.

Vi-me, primeiramente, na história de cada uma daquelas jovens vítimas. Cheguei a Santa Maria aos 17 anos recém-feitos, as portas da UFSM se abriram para mim e a cidade me abraçou – num abraço tão apertado, do qual nunca mais me soltei: Santa Maria me adotou e eu ganhei um lugar para chamar de lar. Vivi plenamente os meus 17 e os anos seguintes, assim como aqueles jovens, ao seu modo, tentavam viver da melhor maneira as suas vidas. Tive o privilégio de escrever minha história universitária de capa a capa, quando eles foram interrompidos justamente na introdução de um novo capítulo...

Depois, vi-me na dor das mães da tragédia. Só quem tem filhos sabe a angústia que é tê-los longe dos olhos... Ao mesmo tempo em que a confiança precisa ser fortalecida – nas decisões que o filho, em seu processo de independência, vai tomando sozinho – o coração convive com um aperto que não provém do medo, mas de um amor maior, um orar incessante para que as boas escolhas sejam feitas a todo instante. Senti a dor das mães que cuidaram, zelaram, protegeram e amaram, mas sábias entenderam que criavam asas seus pequeninos e precisavam voar. Só não sabiam que para o ninho esses pássaros não mais iriam voltar – pelo menos enquanto durar esta jornada terrena.

 Tudo isso me fez silenciar. Mas foi positivo meu silêncio, precisei dele para me reestruturar como mãe. Também precisei me aquietar para orar com mais fervor por esses familiares devastados pela dor. Em minha aparente passividade, reagi com mais força e firmeza do que se gritasse exigindo os “porquês” dessa tragédia ou se me precipitasse em julgamentos, quando cabe à polícia o árduo trabalho de investigação.

Como se não bastassem as dores relatadas, fui surpreendida com o diagnóstico inesperado dado a uma amiga: leucemia. Refiro-me a uma mãe, cuja filha primogênita está às vésperas de completar um aninho. Uma mãe, jovem e linda, plena de planos, de sonhos, de vida!

Mas que ninguém lamente a  sina desta minha corajosa amiga, pois lamúria definitivamente não combina com ela: tem-se mostrado forte e destemida! Sua fé não vacilou, ao contrário, serve de exemplo para outros que sofrem, por diferentes motivos. Segue de cabeça erguida, segurando confiante a mão do Salvador, prestando um testemunho seguro do conforto que tem recebido dos céus nestes momentos incertos.

Com todas as circunstâncias desfavoráveis, o que a faz reagir tão positivamente? Tenho pensado muito nisso, e cheguei a algumas respostas. A mais contundente delas, porém, é uma só:   sua fé vinha sendo alimentada ao longo de anos, não precisou ser ativada de repente, num momento de aflição. Minha querida amiga agora vive com as reservas espirituais, guardadas através de uma vida digna e inquestionável. Surpreendida pela adversidade, não foi vencida pelo desespero: o temor há muito tempo foi expulso pela confiança em um Deus de milagres, que tudo pode em benefício de seus filhos justos.


No mesmo Deus dessa amiga, creio eu. Não é fácil manter o otimismo quando o fardo pesado de repente repousa sobre nossos ombros, e passa a ser nossa a missão de carregá-lo. Não sabemos ao certo a reação que teremos. Mas uma verdade restou comprovada: a fé somente ajuda, jamais atrapalha. 



Suzy Rhoden

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Uma História de Amor



Falar de amor é fácil. Uns falam, outros escrevem, cantam, declamam... Eu diria que é o assunto mais comum de toda nossa literatura, a inspiração que nunca cessa para novas canções, o sentimento mais explorado e que já perambulou por todos os lábios. Mas viver um amor – vivê-lo na sua plenitude – é coisa para poucos.

“Te amo” hoje em dia equivale a “me passa o açúcar”. Seu prazo de validade não ultrapassa o café-da-manhã em muitas situações. O verbo amar deixou de ser intransitivo na prática, para exigir um complemento: Te amo...

...Se me levar pra jantar esta noite, no restaurante mais caro da cidade, e me cobrir de jóias, e me proporcionar uma vida glamorosa!

...Se tivermos a mesma opinião, porque se for necessário dialogar até chegarmos a um consenso, é desgastante demais para mim.

...Se lembrar da cor do esmalte que eu usava, na primeira vez que cortei 1 cm do cabelo, depois que nos conhecemos, pois um esquecimento desses é imperdoável num homem!

E mais um milhão de “ses”. É condicional, na mesma proporção em que é superficial. Que importa o conteúdo, afinal? Importa o que os olhos veem – os nossos, e os olhos daqueles a quem queremos fazer inveja com nossa nova aquisição sentimental. Às vezes, penso que os casamentos de hoje são exatamente isso: a compra de um produto. Ao sinal do primeiro defeito, não se perde tempo com consertos: troca-se. Inclusive, para facilitar a troca – ou seria a sonegação? – nem recibos se usam mais: quantas pessoas ainda valorizam o clássico “casar de papel passado”?

Por isso acredito que viver um amor de verdade é para poucos. Pois além de envelhecer lado a lado, é preciso fazê-lo com qualidade na relação. Sem um tirano e um subjugado, sendo ambos livres e, justamente no exercício de sua liberdade, continuando a escolher diariamente a companhia um do outro.

Além disso, estamos sujeitos às intempéries da vida e ocasionalmente teremos que enfrentar as provas de fogo que a existência terrena trará: o que fazer se o companheiro adoecer gravemente? E se ele cometer um deslize “imperdoável”, mas mostrar frutos dignos de verdadeiro arrependimento? E se ele falir nos negócios e alterar completamente o padrão de vida até então ostentado? Ou se for imputada a ele falsa acusação, colocando em cheque sua integridade e sua reputação?

Alguns responderão com um retumbante FICAR AO LADO DELE! Mas seguem as perguntas:  um “permanecer” motivado pela caridade, uma simples resignação , ou uma firme e inquestionável decisão da mente e do coração,  um querer estar ali, com aquele ser amado?

Tão fácil falar de amor quando se é jovem e esbelto. E quando a primavera da vida der lugar ao outono? Quando as folhas começarem a cair, dando os sinais de que se aproxima uma nova estação...

Tão fácil falar de amor quando se tem um corpo sadio, sem deficiências ou limitações. E quando o companheiro sofre um acidente que lhe tira alguns movimentos, que o coloca em algum nível de dependência? Claro que muitos permanecem. Mas mostram em cada gesto que estão ali por mera obrigação, contra sua vontade, numa cruel resignação.

São poucas as histórias de amor que tenho para contar. Mas existem e precisam ser compartilhadas, como um lembrete de que a adversidade não serve como justificativa para o fim de um relacionamento:  só deixa de amar quem condiciona o amor!

Há algum tempo, conheci o Flávio e a Juliana. Lindos, ativos, cheios de planos e de sonhos. Seu amor frutificou, vieram o Vitor e a Carolina. E um dia, no auge de suas conquistas, veio também o AVC da Juliana. O corpo, tão belo, ficou limitado em seus movimentos. A voz desapareceu quase por completo. A atividade foi substituída pela reclusão a uma cama, no máximo a uma cadeira de rodas.

Até aqui, a história é conhecida de muitos – seu caso não é exclusivo. O capítulo ao qual me refiro, porém, é um que li com meus próprios olhos, durante visita que lhes fiz certo dia: os olhos de marido e mulher demonstravam a cada instante a profundidade de seu amor! Não senti qualquer necessidade de palavras entre eles. Ela, com muito esforço e auxílio de uma fonoaudióloga, consegue pronunciar monossílabos atualmente, os quais são amplamente comemorados por seu esposo – para a interação dela com os outros, obviamente. Para eles, isso é apenas um detalhe, não uma necessidade. 

Além disso, recentemente ela voltou a assumir a cozinha de sua casa – uma vitória que chega perto de um milagre para quem a conhece! Tive o prazer de experimentar um pudim preparado por suas mãos, dos melhores que já comi na vida, por sinal. Sem exagero ou falsa afirmação.

De onde eu estava, no entanto, via mais do que a superação de uma guerreira: via um par de olhos apaixonados seguindo seus mínimos movimentos pela casa, brilhando a cada nova conquista. Um incentivador? Não, um amor.

De repente, em meio a maior adversidade de suas vidas, quando tinham  todas as justificativas para lamentar e entregarem-se ao desespero, oferecem singelamente um ao outro aquilo que os jovens, os esbeltos, os sadios e os “perfeitos” tanto proclamam, mas do qual entendem apenas em versos: o amor puro, genuíno e incondicional.

Suzy Rhoden
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