domingo, 25 de agosto de 2013

Chove Chuva...


Na falta de um barco, para dar um passeio pelas ruas alagadas de minha cidade, resigno-me ao aconchego de meus aposentos, acompanhada de um prato de bolos fritos e chimarrão. Um pouco leio e um pouco escrevo. Coisas típicas de um dia de chuva, afinal.
E, nesse intercalar prazeroso entre comer-beber-ler-escrever, sobro em pensamentos. Talvez por isso não gostemos muito da chuva, quando vem por dias seguidos: somos convidados a mergulhar em profundas reflexões – será por mera falta de outras opções?! E esse mergulho abre o baú tanto para boas, quanto para amargas recordações.
O engraçado é que num instante perdemos o controle, o fio do pensamento. Ele se vai, e nós ficamos. Quando caímos na real, o rosto está molhado por lágrimas doídas de quinhentos anos atrás, como se naquele momento sentíssemos, com a mesma profundidade, aquelas dores de tantos anos passados. Dia de chuva é um perigo, é um flerte com o precipício!
Um minuto depois, contudo, estamos sorrindo com a lembrança dos inesquecíveis banhos de chuva – os divertidos, e também os que nos fizeram pagar mico! E aí o sorriso vira gargalhada, pois entre quatro paredes ficamos à vontade para soltar a risada, aquela entalada há tempos na garganta, que na hora exata o vexame não permitiu sair. Rimos de nós mesmos e de nossas presepadas.
Mas, com a lembrança da gafe, vem a mente a fisionomia da testemunha ocular dos fatos: a Poripopilda, nunca mais a vi! Por onde anda essa criatura?! Não deu mais notícias, deve estar casada, muito ocupada, mãe de uns sete filhos para justificar o sumiço... Poderia procurá-la no Facebook! E correr o risco de vê-la postar, imediatamente após o tradicional ‘oi, quanto tempo!’, um ‘lembro como se fosse hoje daquele seu mico impagável!’, E segue o relato minucioso do mico, pra toda web ler, pois a Poripopilda, muito ocupada com a filharada, não teve até hoje tempo para atualizar-se das configurações e descobrir que é possível – em tese – um mínimo de privacidade nas redes sociais – jura?! É, deixa a Poripopilda só nas lembranças mesmo...
E assim vagueia o pensamento, sem rumo certo, à procura de um pouco de sol possivelmente. E assim vagueio eu, tropeçando nas palavras, atrás desse inconstante... que por sinal, acaba de fugir outra vez! Que vá – cansei-me da brincadeira. Aguardo seu retorno, atracada em um bolinho de chuva. Pois comer é o que há.
“Chove chuva, chove sem parar...” (Jorge Ben Jor)

Suzy Rhoden

domingo, 18 de agosto de 2013

Amor Não Correspondido


Só entende a dor de um amor não correspondido quem bebeu da taça da rejeição até a última gota. Não sorvi dessa taça. Antes tivesse sorvido! Pois o sabor é amargo, contudo fortalecedor: uma espécie de fortificante, de gosto duvidoso, mas de efeito visivelmente positivo para o restante da vida. Sofrer uma rejeição é lição prática de autossuficiência emocional, garante imunidade contra decepções futuras. Para quem sobrevive, naturalmente.
Como disse, não bebi dessa taça. E não me orgulho disso. Pois, para mim, sobrou aquilo que realmente mata, o veneno letal: sou aquela que rejeitou o amor gratuito e desmedido. Sou a vilã, a megera da história.
Voltemos no tempo...
Ângelo e eu nos conhecemos na faculdade. Sabe aquela amizade que cria raízes no primeiro minuto de conversa? Pois é, foi assim. A sensação era de  nos conhecermos há anos, décadas, de outros estágios de vida. Tínhamos assunto pra virar a madrugada, indo de extremos como a Literatura – minha área – à Física, conteúdo que ele dominava, sendo estudante dedicado de Engenharia.
Ângelo era, sob todos os aspectos, o homem perfeito. Perfeito demais, eu diria. Ouvia atentamente tudo que eu dizia, valorizava minhas ideias, era parceiro para atividades culturais ou esportivas, viagens inusitadas ou o que quer que desse na minha cabeça. Era alguém com quem contar em todas as circunstâncias, tive muitas provas disso.
Tornamo-nos grandes amigos primeiro, depois ele se tornou meu confidente. Esse foi nosso erro fatal. Não consigo acreditar hoje no quanto feri seu coração, sem saber que minhas confidências o despedaçavam. Mas foi exatamente assim.
Em algum momento da amizade, contei entusiasmada para Ângelo que estava namorando. Como sempre, ele me parabenizou e apoiou. Desejava o meu bem, a minha felicidade, isso era visível. Quando meu romance começou a virar história de terror, foi no ombro de Ângelo que chorei. Ele nunca reclamou, esteve sempre a minha inteira disposição. Nunca interferiu, nunca questionou minhas escolhas, sempre me respeitou integralmente.
O tempo passou, contudo, e nos separou: Ângelo, já formado,  foi trabalhar em outro estado, bem longe da nossa cidade universitária. Mas, para minha alegria, era freqüente sua presença em Santa Maria, de modo que nossa amizade não sofreu os efeitos da distância.
Numa das visitas de meu amigo, dei-lhe a notícia: fim de namoro, sem volta. Ele me ouviu calado, como geralmente fazia, e partiu. E uma semana depois retornou.
Fiquei surpresa, atravessar tantos quilômetros por duas semanas seguidas pedia um bom motivo. Ele disse que me explicaria durante passeio pelo Campus, para o qual me convidou. Cometi o erro de aceitar o convite.
Por vezes, a ignorância é nossa melhor opção. Mas a mim coube o conhecimento de um segredo aterrador: meu melhor amigo declarou-se apaixonado por mim, há tempos, há anos, vivendo em silêncio a intensidade de seu amor.
Pensei nas vezes em que chorei em seu ombro, aos tropeços com um namoro insatisfatório... Dei-lhe as chances para revelar o que sentia, mas ele, numa atitude admiravelmente altruísta, preferiu manter sigilo de seu amor a influenciar minhas escolhas. Permitiu-me tomar decisões sem interferências, não se aproveitou de minhas fragilidades momentâneas. Foi mais leal à amizade do que a si mesmo e aos seus reais sentimentos.
Não consegui dar resposta imediata, pedi o famoso tempo para pensar. Recebi esse tempo juntamente com flores, poemas, canções. Fui cercada pelas manifestações mais sinceramente românticas que já experimentei em toda minha vida, elevada à condição de musa inspiradora, princesa de conto de fadas. Fui amada.
Mas escolhi ser a bruxa malvada, aquela que oferece a maçã envenenada. Depois de tudo que ele fez por mim, retribuí seus ternos sentimentos com um ‘não’ gelado. Como poderia ser diferente?!
Como falar um ‘não’ sorrindo, com os olhos brilhantes e a respiração ofegante de felicidade?! Proferi um ‘não’ seco e direto. Redondo e taxativo. Como a pior vilã da melhor novela. E... não gostaria de confessar isso, mas a culpa me obriga a fazê-lo: tudo aconteceu no dia dos namorados.
Foi o fim de uma amizade perfeita. Foi também o meu fim, pois Ângelo sobreviveu, mas eu morri. O veneno que fiz com que ele ingerisse surtiu efeito em mim: convivo com o remorso.
Não me arrependo da decisão, era a única possível naquelas circunstâncias. Eu amava Ângelo como um irmão. Mas todos os dias discuto a relação com este meu coração estúpido: o que você quer da vida, seu inconsequente? Prefere se entregar a amores bandidos a devotar afeição a quem só te quer bem?! Masoquista!!!
E assim, estúpidos, são quase todos os corações...

Suzy Rhoden

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O Diário de Elisa


Elisa revirou-se na cama mais uma vez e, por fim, desistiu de dormir. Acendeu a luz de cabeceira. O sono não viria naquela noite, fora expulso pelos milhões de pensamentos que borbulhavam em sua mente.
Reconhecia a ansiedade - aquela intrometida, diagnosticada há dez anos. Mas, ao contrário daquela época sombria de sua vida, agora sabia lidar bem com a intrusa: transformara-a em aliada, por vezes até mesmo em uma companheira.
A jovem pensava nas voltas que dá a vida. Movida por esse pensamento, estendeu a mão e puxou para perto o antigo diário. Um marcador, entre uma página rabiscada e outra em branco, situava Elisa no tempo presente, entre o passado e o futuro.
Ali estava ela, prestes a avançar, traçando novas linhas. Contudo, havia um conflito: e se essas novas linhas significassem literalmente um retorno ao passado? Estaria preparada para reescrever  sua história? Passá-la a limpo, com nova data, mas nas mesmas circunstâncias antigas?
Com o coração aos pulos, voltou no tempo virando páginas. Sabia bem onde queria chegar: às páginas borradas com lágrimas e preenchidas com letra tremida. Quanta dor ali guardada! Sofrimento tão intenso que transbordou da alma, tomou forma de palavras, disfarçou-se de obra literária. A coletânea era tão melancólica que recebeu um título sugestivo: Lembranças de Morrer.
Mas ela não morreu. Numa determinada página, na sequência dos dias, a letra ainda tremia, mas já não estava borrada. E ali dizia: “Adeus, deserto! Vou-me embora e não retorno. Deste lugar miserável, não quero nem o pó nos meus sapatos!” Colocou o diário embaixo do braço e foi, para nunca mais voltar.
No novo lar, Elisa viveu novas histórias – nem todas com final feliz. Porém, ao invés de tremer a letra e manchar as páginas, escrevia cada vez com mais determinação e capricho. Com o passar do tempo, aprendeu que desesperar-se não garantia alteração no enredo; chorar não mudava para melhor o desfecho. Ao invés disso, percebeu que cada desafio que enfrentava e registrava, fazia com que escrevesse – e vivesse – com mais segurança. Em suma, cada dissabor contribuiu para seu aperfeiçoamento.
Até que, num inesperado dia, foi enviada pelo destino de volta ao começo. Como assim, voltar para o deserto?! Somente uma criatura insana aceitaria tal designação. Elisa tinha sobriedade suficiente para dizer a si mesma e ao mundo que não, ela não retornaria!
No entanto, a jovem tinha também maturidade para entender o desafio que a vida lhe propunha: sair do deserto foi apenas a tarefa inicial, um preparativo para a grande e verdadeira missão que lhe cabia. Retornar e transformar aquele lugar sombrio em um lar seria a verdadeira superação.
Elisa podia negar para o mundo, mas intimamente sentia: era  hora de regressar. Ainda assim, tinha liberdade de escolha e, se quisesse, podia seguir em frente sem olhar pra trás, protagonizando novos capítulos de novas histórias. A decisão seria exclusivamente sua.
Pensativa, Elisa localizou o marcador e retomou a última página preenchida de seu diário. Seus dedos avançaram sobre o criado-mudo à procura da caneta: tinha coisas surpreendentes a registrar naquela noite. Tinha uma vida para reescrever.

Suzy Rhoden
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