Maria Eugênia fechou o antigo diário,
cheio de confidências, e aconchegou-o junto ao peito, num impulso protetor.
Protegia as lembranças do passado; salvava, intocado, um grande amor.
Os filhos e os netos já tinham, diversas
vezes, virado aquelas páginas amareladas. Nunca viram nada além de uma história
tradicional, de uma moça que se casa jovem, segundo os padrões de sua época,
mantendo fielmente os princípios conservadores de sua religião. Sabia não
ter-se casado por imposição dos pais, e sim ter escolhido os ditames dessa
tradição vigente. Tinha forças para rebelar-se, mas não quis fazê-lo. Casou-se,
teve filhos, netos, enviuvou.
Só então subiu ao sótão para resgatar as
entrelinhas de sua história. Aquelas que ninguém nunca leu, mas que sempre
estiveram ali, se insinuando sobre o texto principal. Com grande esforço, Maria
Eugênia controlou as palavras. Escreveu com a razão, sufocando corajosamente os
sussurros do coração. Não houve um deslize sequer: escreveu a ficção de sua
vida, guardou para si a história real.
Há muitos anos, houve um grande amor.
Chamava-se Vicenzo. Disfarçado de amigo, ocupou várias páginas de sua vida.
Preencheu pensamentos e sentimentos também. Mas a jovem nunca deixou que ele
soubesse o quanto significou, resguardou-se.
Ele, por sua vez, declarou o amor que
sentia. Revolucionário por natureza, sabia não preencher os requisitos impostos
pela época, mas isso não o deteve ou silenciou. Lutou enquanto pôde. Não
aceitava o conservadorismo e não acreditava na prática de casamentos somente
entre os de mesma religião.
Por fim, declarou-se a guerra de ideais.
Uma guerra silenciosa, corroendo dois corações. Maria Eugênia, convicta,
defendia padrões aprendidos no berço, sob os quais educaria os próprios filhos, legado a ser transmitido de geração em geração. Vicenzo, revolucionário, negava-se a pautar a vida por um molde, não se dispôs a fazê-lo nem mesmo para agradar a amada. Nenhum cedeu. O amor perdeu.
Maria Eugênia casou-se conforme os padrões de sua religião. Vicenzo seguiu gritando ao mundo sua rebeldia
contra os costumes da época, mas a jovem senhora já não se permitia ouvir seus
gritos, suas reivindicações. Era fiel a princípios, sacrificava sentimentos.
Escolheu e viveu leal a sua escolha. Desviava para as entrelinhas qualquer
indício de emoção, como seguiria um trem descarrilhado rumo ao desastre. Ela,
resignadamente, mantinha a linha e a compostura, estação após estação.
Sessenta anos se passaram de um viver
premeditado. Não se é infeliz vivendo assim: Maria Eugênia construiu a família
estável que sempre sonhou, fundamentada em padrões, em convicções.
Arrependeu-se da escolha? Isso é algo que não poderia dizer, que ela própria
jamais poderia saber ao certo.
E Vicenzo? Viveu para sempre nas
entrelinhas, como o verdadeiro e único grande amor de sua vida: um amor
preservado, que não sofreu os desgastes da convivência diária; que não se expôs
às cobranças típicas dos relacionamentos humanos. Talvez por isso, justamente, tenha
sobrevivido, lindo e encantado, sem jamais ter sido profanado.
Nesse instante, o toque da campainha
feriu os ouvidos de Maria Eugênia, conduzindo-a de volta a sua vida fictícia.
Com o diário ainda em mãos, espiou da janela do sótão... E então recuou, chocada,
deixando o diário querido fugir das mãos e estatelar-se contra o chão, tendo as
páginas reviradas.
Seria possível, aos oitenta anos, que a
realidade viesse resgatá-la?!
Nunca
é tarde para o amor. Em algumas histórias, o príncipe encantado vem a galope...
em outras, vem de bengala!
Suzy Rhoden