domingo, 29 de setembro de 2013

Entre a Ficção e a Realidade



Maria Eugênia fechou o antigo diário, cheio de confidências, e aconchegou-o junto ao peito, num impulso protetor. Protegia as lembranças do passado; salvava, intocado, um grande amor.

Os filhos e os netos já tinham, diversas vezes, virado aquelas páginas amareladas. Nunca viram nada além de uma história tradicional, de uma moça que se casa jovem, segundo os padrões de sua época, mantendo fielmente os princípios conservadores de sua religião. Sabia não ter-se casado por imposição dos pais, e sim ter escolhido os ditames dessa tradição vigente. Tinha forças para rebelar-se, mas não quis fazê-lo. Casou-se, teve filhos, netos, enviuvou.

Só então subiu ao sótão para resgatar as entrelinhas de sua história. Aquelas que ninguém nunca leu, mas que sempre estiveram ali, se insinuando sobre o texto principal. Com grande esforço, Maria Eugênia controlou as palavras. Escreveu com a razão, sufocando corajosamente os sussurros do coração. Não houve um deslize sequer: escreveu a ficção de sua vida, guardou para si a história real.

Há muitos anos, houve um grande amor. Chamava-se Vicenzo. Disfarçado de amigo, ocupou várias páginas de sua vida. Preencheu pensamentos e sentimentos também. Mas a jovem nunca deixou que ele soubesse o quanto significou, resguardou-se.

Ele, por sua vez, declarou o amor que sentia. Revolucionário por natureza, sabia não preencher os requisitos impostos pela época, mas isso não o deteve ou silenciou. Lutou enquanto pôde. Não aceitava o conservadorismo e não acreditava na prática de casamentos somente entre os de mesma religião.

Por fim, declarou-se a guerra de ideais. Uma guerra silenciosa, corroendo dois corações. Maria Eugênia, convicta, defendia padrões aprendidos no berço, sob os quais educaria os próprios filhos, legado a ser transmitido de geração em geração. Vicenzo, revolucionário, negava-se a pautar a vida por um molde, não se dispôs a fazê-lo nem mesmo para agradar a amada. Nenhum cedeu. O amor perdeu.

Maria Eugênia casou-se conforme os padrões de sua religião. Vicenzo seguiu gritando ao mundo sua rebeldia contra os costumes da época, mas a jovem senhora já não se permitia ouvir seus gritos, suas reivindicações. Era fiel a princípios, sacrificava sentimentos. Escolheu e viveu leal a sua escolha. Desviava para as entrelinhas qualquer indício de emoção, como seguiria um trem descarrilhado rumo ao desastre. Ela, resignadamente, mantinha a linha e a compostura, estação após estação.

Sessenta anos se passaram de um viver premeditado. Não se é infeliz vivendo assim: Maria Eugênia construiu a família estável que sempre sonhou, fundamentada em padrões, em convicções. Arrependeu-se da escolha? Isso é algo que não poderia dizer, que ela própria jamais poderia saber ao certo.

E Vicenzo? Viveu para sempre nas entrelinhas, como o verdadeiro e único grande amor de sua vida: um amor preservado, que não sofreu os desgastes da convivência diária; que não se expôs às cobranças típicas dos relacionamentos humanos. Talvez por isso, justamente, tenha sobrevivido, lindo e encantado, sem jamais ter sido profanado.

Nesse instante, o toque da campainha feriu os ouvidos de Maria Eugênia, conduzindo-a de volta a sua vida fictícia. Com o diário ainda em mãos, espiou da janela do sótão... E então recuou, chocada, deixando o diário querido fugir das mãos e estatelar-se contra o chão, tendo as páginas reviradas.

Seria possível, aos oitenta anos, que a realidade viesse resgatá-la?!

Nunca é tarde para o amor. Em algumas histórias, o príncipe encantado vem a galope... em outras, vem de bengala!
Suzy Rhoden


30 comentários:

  1. Nooooooooooossa!! Que lindo, emocionante e não pude deixar de pensar na minha mãe que, mesmo amando o marido, ficaram juntos por 52 anos, at´e a morte dele e no entanto sempre foi apaixonada pelo OUTRO AMOR, defunto também, que, por acaso, é meu pai,rs...Novela? Não!!!rs beijos praianos (dei uma fugida e vim ver o marzão e sualinda energia) Adorei te ver de volta! chica

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    1. Novela mesmo, Chica!!! O interessante é que a vida é feita dessas histórias, de encontros e desencontros... Muitas coisas só são compreendidas depois de muitos anos transcorridos... Por isso que a vida imita a a arte, e a arte imita a vida!
      Boa praia para ti, aproveita por mim que sigo na selva de pedras! Beijos.

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  2. Limerique

    Pois amor verdadeiro jamais se cala
    Se sufocado, esperança embala
    Engole a revolta
    E um dia ele volta
    Se não for de corcel, será de bengala.

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    1. É, parece que sim, Jair... Obrigada pelo limerique, gosto muito deles!

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  3. Linda história Suzy! O amor como sempre ilustrando, magnificamente, os seus textos. Amei!
    Bom domingo para você minha querida.

    Beijos

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    1. Néia, tem ficado evidente uma quedinha minha por amores platônicos e diários, não é? rsrsrs
      Obrigada, amiga, pela presença! Beijão.

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  4. Nossa amiga, que lindoooooooooooo!!!!

    Ah, o amor! Esse sentimento de muitas vertentes (vivido, renunciado, correspondido, rejeitado...) sempre me emociona. No fundo, sou uma romântica incorrigível rsrs.

    Resgatar o amor do passado para Maria Eugênia, imagino que seja como acordar a realidade que ela adormeceu dentro de si enquanto vagueava num sonho: cômodo e necessário. Faltou coragem para viver plenamente esse amor com todas suas consequências? Talvez, mas acho que ela precisou de mais coragem para escolher vivê-lo da pior maneira possível: em segredo.

    Amiga! Vc está escrevendo cada vez melhor!! Esse conto está especial, sobretudo porque sua narração é especial! Tua escrita me encanta, tenho a impressão que suas palavras são geradas no coração, e depois, paridas direto para o teclado rsrs... Mil vezes parabéns!!

    Beijinhos!

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    1. Sueli, a sua interpretação me arrepia: você lê minha alma! rsrsrs
      Interessante esse entendimento da escolha de Maria Eugênia como o vaguear num sonho "cômodo e necessário". Quem poderá julgá-la?!...
      Agradeço os elogios e a recepção de minhas palavras como provenientes do coração... de fato é assim!
      Beijo grato!

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  5. .... esqueci de elogiar a foto: está belíssima!! Vc sempre acerta na ilustração dos textos! Ô mulher danada de boa em tudo que faz, viu!! kkkkkk

    + beijinhos, uma semana MARAVILHENTA pra ti!!! rsrs

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    1. Também adorei a foto! Ela fala por si mesma... Beijinhos pra ti também!

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  6. Suzy querida,

    Eu adorei o conto e, em especial, a frase final. Foi um toque de humor para quebrar o envolvimento com a história. Eu já estava aqui ansiando por presenciar a figura do reencontro-rs
    Difícil de julgar a escolha de Maria Eugênia. Ela seguiu o rigor da tradição conservadora da época e foi fiel a ela, ainda que a custo da renúncia do amor de sua vida. Não foi infeliz e ainda teve a oportunidade de reencontrar este amor, ainda que em uma estação tardia da vida. Tudo poderia ter sido diferente, mas sem garantias de que fosse melhor, já que Vicenzo era um revolucionário e poderia haver choque na educação de eventuais filhos.

    Excelente a crônica. Você escreve muito bem e sabe como envolver o leitor. Parabéns!

    Gostei de vê-la de volta.

    Ótima semana!

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    1. Obrigada, Vera Lúcia! Fico lisonjeada :)
      Também acho complicado julgar a escolha da protagonista... Por isso deixei para o leitor fazê-lo inteiramente, eu apenas narro os fatos! rsrsrs
      Adorei sua opinião, muito prudente, muito sensata.
      Beijão!

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  7. Olá!
    Passando para conhecer seu cantinho e me encantei!
    Linda postagem, o amor é o sentimento mais sublime que existe!
    Já fiquei por aqui, estou seguindo!
    Lindo dia!
    Carinhosamente

    Olá!
    Esperança, fé e amor! Tudo o que precisamos para seguir em frente.
    Lindo seu cantinho encantado.
    Amei, já vou ficar por aqui, seguindo seu cantinho!
    Tenha um dia especial!
    Com carinho

    Blog: Femme Digital

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  8. Arrepiei lendo o conto que empresta realidade da vda de tanta gente, embora eu pense que não conseguisse jamais ter uma vida feliz construída sobre um amor que não me arrebatasse... vai ver este sentir vem da vivência de um amor profundo, alicerce de uma vida feliz pelo tempo que assim cultivamos...

    Sueli já disse tudo sobre tua escrita fantástica, mas preciso refeorçar que tua forma de transmitir tuas criações encantam, roubam a gente do tempo, eu mesma preciso reler, beber as palavras enquanto as imagens se formam, num conjunto de associações possíveis diante do relato perfeito e instigante... adorei, e fico me perguntando pq não considera alçar vôo mais longínquo e nos presentear com um livro... um romance que eu e a Sueli terminaríamos de ler em lágrimas, com certeza... rsrsrs

    Pense nisso, é séria a sugestão!!
    Bjoca, querida!

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    1. Denise, você é tão adorável sempre que comenta! De uma gentileza nas palavras que me encanta... Obrigada pelo apoio e pelo grande incentivo, talvez o blog me ajude a ficar pronta para algum dia realmente escrever um livro! E você e Sueli terão tudo a ver com isso... rsrsrs
      Obrigada mesmo pela sugestão, levarei muito a sério, viu! rsrsrs
      Beijoca, com carinho.

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  9. OI SUZY!
    COLOCASTE TEU CONTO EM UM TEMPO EM QUE MUITAS MULHERES FAZIAM ISSO, GERALMENTE POR IMPOSIÇÃO FAMILIAR OU SOCIAL ABRIAM MÃO DO VERDADEIRO AMOR EM DETRIMENTO DA FELICIDADE.
    COMO JÁ TE DISSE MUITAS VEZES E SEI QUE VOU DIZER MUITAS MAIS, ESCREVES COM UMA CLAREZA QUE ENCANTA, COM UMA BELEZA INCONTESTÁVEL, ENTÃO O QUE POSSO DIZER A NÃO SER, LINDO, LINDO, LINDO...
    QUE BOM TERES CURTIDO TUAS FÉRIAS E VOLTADO FELIZ E CHEIA DE IDEIAS PARA NOSSO BEM.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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    1. Lani, o sacrifício do verdadeiro amor aconteceu tantas vezes na história da humanidade, não é? Estou certa de que, se tivéssemos acesso aos corações de nossas ancestrais, encontraríamos tesouros escondidos... rsrsrs
      Agradeço o carinho costumeiro, você eleva minha auto-estima e é um amor de amiga!
      Beijos e mais beijos!

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  10. Oi, Suzy,
    Beleza de conto! Mostra nitidamente as nuances e as diferenças da alma de cada um. Quem poderá julgar certos atos se o ser humano tem inúmeras razões para suas escolhas? Por isso o conto é lindo, deixa liberdade para interpretações, reflexões e para comparações, as quais muitas vezes nos colocamos no lugar da protagonista, no caso Maria Eugênia. A vida muda, os relacionamentos se modernizam (ou não). Mas no fundo, as escolhas são pessoais, mesmo ferindo outros corações e dando outro rumo às coisas, aos amores.
    Parabéns, como sempre show de bola!
    Beijão e uma boa semana pra você.

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    1. Tais, a diversidade de interpretações é impressionante! Para alguns, Maria Eugênia cometeu uma grande loucura ao renunciar ao seu grande amor; outros entendem seus motivos. De fato, as decisões são pessoais e o julgamento das escolhas do outro serão sempre superficiais, porque não conhecemos seus corações.
      Fico feliz que você tenha gostado e comentado aqui, obrigada! Beijinhos.

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  11. OI Susi, estava sentindo sua ausência.

    Como era ainda mais difícil ser mulher no tempo do seu conto. Imagina ter que sufocar um amor tão grande durante anos, para satisfazer padrões, costumes. Por aí sentimos a capacidade que tem uma mulher e a força , até mesmo para lutar contra si, suplantando suas emoções , desejos e sonhos, resignando-se . Talvez fosse esse o maior combate. Ainda bem que aos poucos conseguimos conquistar nossa liberdade .
    Um conto apaixonante, muito bem escrito, me deixou a sensação de um final feliz, de um reencontro emocionante,quem sabe, com risos, soluços, lágrimas, e a prova de que nada apaga um grande amor, mesmo que o tempo o traga de "bengala".
    Bjs. Amei.Parabéns.

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    1. Oi Lourdinha, também senti falta de circular por aqui :) O sumiço foi forçado, viu! rsrsrs E ainda estou 'devagar, devagarinho', mas feliz por estar de novo na blogosfera...
      Agradeço a opinião compartilhada, ser mulher foi sempre um grande desafio - e continua sendo, pois, ao meu ver, os avanços foram de um extremo a outro, perdendo-se o equilíbrio no meio das conquistas... Mas isso é assunto para outro texto! rsrsrs
      Tão bom tê-la sempre por aqui, com seus comentários lindos e gentis!
      Um beijo enorme.

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  12. Maria Eugênia estava apenas escrevendo sua história e por ser sua somente ela compreendia. Cada qual sabe da sua alma e, somente compreende as páginas amarelas quem as escreveu. Lindo e terno este conto cheio de sensibilidade, como tudo aquilo que você posta! Gosto muito !!!

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    1. Obrigada, Malu! Me alegro em saber que meus textos refletem essa sensibilidade que você menciona... como dar palpite na vida do outro, não é? Das nossas páginas, só nós entendemos com exatidão!
      Obrigada por vir, comentar e deixar seu carinho presente nesta página. Beijão!

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  13. Acabei de postar seu belo texto aqui

    http://semolharescriticos.blogspot.com.br/2013/10/entre-ficcao-e-realidade.html

    Direcionei o link pra suas páginas.

    Um abraço

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    1. Obrigada, Malu! Já estive lá, ficou tudo lindo e bem colorido.
      Agradeço o carinho e a consideração, muitos beijos!

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  14. Olá!!!, Deus te abençoe boa tarde, amiga tenha ótimo final de semana quando vale a pena o amor devemos da uma cham se de tudo vota ao normal, mais amei o testo esta maravilhoso, SUCESSO AMIGA.
    já estou te seguindo aguardo retribuição.
    Blog: http://arrasandonobatomvermelho.blogspot.com.br
    Canal de youtube: http://www.youtube.com/NekitaReis

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  15. Suzy querida,

    Passo para lhe desejar um feliz domingo, já que estarei 'off' durante o dia, pois irei a Conselheiro Lafaiete ver minha mãe.
    Obrigada pela visita e carinho das palavras, além do ótimo comentário, claro.

    Beijo.

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  16. Oi Suzy :)
    Como teria sido se Maria Eugênia e Vicenzo,tivessem se casado quando jovens né?
    Impossível saber,eu apenas suponho que todo encantamento teria sido ofuscado com a convivência,já que ambos eram bem diferentes inclusive do ponto de vista religioso...
    Mas agora todo aquele amor preservado pode ser vivenciado intensamente e sem culpas...
    Vc arrasou em mais uma crônica!
    Bjs e ótima semana \o/

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  17. Olá!
    Muito obrigado pela visita!
    Desejo uma ótima semana para ti!
    Bjs do Neno

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  18. Suzy, mas que belo! Não tinha parado pra pensar, mas não é que muitas histórias assim devem estar guardadas nos corações dos idosos que nos circundam? Não digo exatamente da mesma forma, mas seguindo essa estrutura, essa preferência pelos padrões, que era bem amplificados nessas épocas, principalmente porque o país passava por diversos altos e baixos... Não que o príncipe tenha que ser exatamente um revolucionário, mas pode ser um príncipe pobre para uma moça rica, ou uma moça pobre para um príncipe rico. Ou um príncipe natureza, que apreciava viagens, para uma moça caseira, que precisava estar com a família. Histórias de amor, não. História de amores. Devem ser tantas. Mas muitas, assim como acontece com tua personagem, devem guardar consigo muito do que aconteceu. Algumas, porém, não têm a mesma sorte.

    Linda mensagem, lindo texto!

    Abraço!

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