sábado, 19 de outubro de 2013

A Fotografia


Um punhal não teria sido mais certeiro do que aquela fotografia entre os pertences do marido. O sorriso perfuro cortante atingiu-lhe em cheio o coração – não havia nele sinais de desdém, o que mais a machucou. Havia apenas supremacia. Como alguém que sorri do passado encarando o futuro, disposta a viver como um eterno presente na vida daquele para quem, naquele instante, sorria.

Odiou à primeira vista aquela desconhecida tão familiar. Sabia bem de quem se tratava... O gosto amargo da traição tocou-lhe os lábios, enquanto dos olhos vazaram litros de ressentimento. Amava-o, isso não era o bastante? Dedicara a ele cada um de seus dias; a fidelidade de seu corpo e de sua alma; a intensidade de seus pensamentos. E ele fora apenas metade, todos esses anos!

Guardava, ainda, a lembrança de uma mulher que o rejeitou. De uma garota estúpida que pisou, sem piedade, em seus mais nobres sentimentos. E partiu, sem olhar para trás, deixando nas mãos que ofereciam amor apenas um maldito retrato.

Ela – a esposa devotada – o  encontrara mutilado por dentro. Juntou-lhe os cacos, mostrou-lhe outra forma de amar: com um amor maduro, alicerçado na amizade e no companheirismo, que encontra a própria felicidade no altruísmo. Sereno como o raiar de um novo dia.

Mas ele insistia em voltar os olhos para o crepúsculo de sua vida. Buscava a que, talvez, tenha apontado  estrelas, mas  deixara noite e solidão em seu lugar. Por que, afinal, ele  procurava por quem se foi sem sequer dizer adeus, quando tinha ao  lado alguém que esquecia de si  para agradá-lo e fazê-lo feliz?! Por quê?! Um milhão de inconsoláveis por quês...

Estraçalhada, sufocou um gemido no peito, enquanto o corpo pendia para a frente, contraído pela dor repentina. Uma dor da alma, aguda e dilacerante, a rasgar-lhe os sonhos e as esperanças que alimentou. Susteve-a a escrivaninha, onde firmou os braços em busca de apoio, carente de alento – a mesma  escrivaninha que, cinicamente, ocultara o sorriso de  outra em seus compartimentos.

Num esforço supremo, juntou a  porção de dignidade que lhe restava e premeditou a cena final. Sabia de antemão que seria julgada imatura e que sua decisão seria vista como um ato de desespero. Mas não importava, estava disposta a acabar definitivamente com aquele fantasma, podia vislumbrar-lhe as cinzas inglórias! Agiu.

Como que atraído pela tragédia, que se dissipava tal qual fumaça no ar, o marido entrou no escritório para ver extinguir-se a última chama. Era tarde  para resgatar do incêndio de ciúmes da esposa o sorriso que, por tantos anos, o hipnotizou.

O passado finalmente encontrou seu lugar na linha do tempo: parou de provocar o futuro, tornou-se incapaz de assombrar o presente. Ficou para trás, fincou raízes na Terra do Nunca e ali jaz, esquecido.

Marido e mulher não disseram palavra, não foi necessário. Abraçaram-se. Morreu, com a última chama, a paixão – ela foi sacrificada. Para que pudesse nascer, pleno de sinceridade, o amor – ele merecia existir!
Suzy Rhoden



terça-feira, 15 de outubro de 2013

Curativo


Um de meus livros preferidos apresenta a Morte como narradora. A simples alusão ao nome da indesejada personagem já projeta na mente humana a tradicional imagem cadavérica, escondida sob capuz negro, carregando uma gadanha às costas. Antipatia gratuita é o principal sentimento evocado – que passe longe essa senhora!

 Não é assim, porém, que a narradora de A Menina que Roubava Livros descreve a si mesma: “Quer saber a minha verdadeira aparência? Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo”...

Não pude evitar a estranha comparação: profissionalmente falando, não importa o quanto gentil e agradável  me apresente, serei vista e lembrada como aquela que revirou feridas e que provocou novas velhas dores. Minha sala é o último recurso do ser humano, local evitado sob qualquer circunstância.

É mais fácil fingir que o ferimento cicatrizou, jogar um band-aid por cima dele
 e seguir a vida. Por dentro, continua a corroer a infecção que mina o corpo, a mente e a alma. Eu entro na história para bagunçar tudo, arranco o band-aid e, num choque absurdo de realidade, coloco o dedo nas feridas. Fria e imparcial – essa sou eu, vista do outro lado da mesa. Mas não faço mais do que escancarar uma história já escrita, para que seu próprio autor a leia – providencio o indesejável espelho!

A Morte de meu livro menciona a guerra como um insaciável chefe, a repetir sem parar: “apronte logo isso, apronte logo isso.” A funcionária aumenta o trabalho, faz o que tem que ser feito, mas o chefe não agradece: pede mais.

Não é assim também em nossos dias? Não se aplica o mesmo vocábulo  para descrever a luta diária da população de bem por sua sobrevivência neste mundo onde impera a criminalidade? Acordamos todos os dias e saímos para a guerra, orando para retornarmos vivos para nossos queridos – e para que eles tenham a bênção de voltar para nós! Está aí meu chefe insaciável, o multiplicador de feridas na sociedade e, consequentemente, de seres indefesos dos quais  tenho que arrancar o inútil curativo, como se a mim não coubesse, não fosse conveniente a compaixão.

Minha mente se volta para Lucy neste momento. Mulher de seus quase 50 anos. Adentrou minha sala muito segura, envolta em ataduras, jurando ter dado a si mesma o tratamento adequado.  Saiu dali com 9 anos de idade, chorando compulsivamente enquanto era espancada, desprotegida e abandonada pela mãe. A mesma mãe de quem Lucy, na vida adulta, veio a cuidar no leito de morte e pela qual lutou pelos direitos de justiça e dignidade. Escancarei a ferida, coube a mim mexer nela. Meu chefe insaciável ditou as regras.

Tal qual a Morte retratada em meu livro, sinto-me por vezes “Abrindo caminho por tudo aquilo. Na superfície, imperturbável, resoluta. Por baixo, abatida, desatada, desfeita”. Não é fácil lidar com a dor do outro. Não é mesmo. Mas é nobre.

É necessário. É imperativo. É imprescindível. Para que haja esperança de justiça na terra, diante das barbáries que fazem gemer este planeta: os crimes praticados contra  vulneráveis. Para que a justiça tarde, por vezes – não sou senhora do Tempo – mas definitivamente não falhe!

“Talvez você argumente que eu faço a ronda em qualquer ano, mas às vezes a raça humana gosta de acelerar um pouquinho as coisas.” Tempos de guerra, tempos de violência contra seres que deveriam receber apenas proteção... Tempos de feridas que custam a cicatrizar! Sinto muito, Lucy.
Suzy Rhoden






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