Iracema,
mulher de temperamento forte, dispensa descrição física: ninguém se dá conta se
é gorda ou magra, alta ou baixa, feia ou bonita, pois seu gênio sempre exaltado
se sobressai a qualquer outra qualificação que possa ser feita de sua pessoa.
Como
toda mulher geniosa, casou-se com homem que não tem boca pra nada: Pacífico é
seu nome.
O
pobre vivia como parte da mobília, que nem para decorar servia naquela casa. Estava mais para objeto de tropeço, um móvel velho e inapropriado, que por caridade
não se jogava fora. É inútil e desnecessário – resmungava Iracema pelos cantos.
As
rixas de Iracema com o esposo começaram cedo, na própria noite de núpcias. Botou
o marido dormir no sofá, pois não gostava do jeito que ele se enrolava como uma
cobra para dormir. Não tinha postura, elegância, quando entortava daquele jeito
a coluna. E ela, mulher fina por natureza, não se submeteria as manias de
solteiro do marido. Ou ele dormia retinho como uma tábua, ou desocupava a cama
do casal, pois aquilo não era ninho.
E
em ninho transformou-se o sofá da sala, por trinta longos anos.
Em
uma semana de casamento, Iracema já proclamava uma lista reclamações, todas
faltas de natureza gravíssima: portas
dos armários abertas, potinhos
destampados na geladeira, toalha sobre a cama, cobertor esquecido no sofá, acento do vaso não levantado, meias no chão da sala, barbeador em cima da mesa da cozinha... Pacífico
pedia xingamentos! - bufava Iracema pela casa.
A
mulher, soltando fogo pelas ventas, botava o dedo na cara do marido e exigia
retratação imediata, pois acaso pensava que era sua escrava? O vivente não
argumentava, não se rebelava, não propunha revolução interna contra a ditadura
da mulher, aceitava-lhe as imposições e tratava de botar as coisas em ordem na
casa.
Mas
não importava o quanto Pacífico tentasse agradar, a implicância de Iracema só
aumentava: vociferava quando o coitado, distraído por um instante, fazia algum ruído
ao sorver a sopa! Parava o jantar e dava início ao sermão. Pacífico afundava na
cadeira, e a comida esfriava.
Mas
a pior de todas as crises se deu no dia em que Iracema pegou o marido no
flagra, chupando uma laranja na sacada: como ele ousava enfiar a cara dentro da
laranja ao invés de levar, elengantemente, gomo por gomo até a boca?! Iracema
surtou, correu com o marido para os fundos de casa, completamente irada!
A
história só mudou quando, num inspirado dia, Iracema encafifou que Pacífico deveria
ter sido pastor. Mas de que jeito, se nem ler a bíblia aquele imprestável lia!
Ela, muito beata, naturalmente passava os dias com o livro sagrado aberto sobre
a mesa, discursando a respeito dele. Não existia mulher mais religiosa... na
teoria!
Pacífico,
para silenciar a mulher, fez o que sempre fazia: acatou a ordem, pegando a
bíblia para lê-la. Mas de imediato mudou o semblante daquele homem. Os lábios,
calados com expressão de muxoxo, ganharam subitamente a expressão de segredo.
Pacífico passou aquele dia inteiro em profunda meditação.
Iracema
percebeu a mudança e, claro, se irritou. Xingou o esposo, chamando-o de fariseu
hipócrita, que lia e não cumpria com a palavra – pois continuava com os mesmos
terríveis defeitos!
Pacífico
não se alterou, fora milagrosamente salvo, encontrara a cura para seu mal. Olhou
para a esposa furiosa e sorriu. Sabia exatamente o que fazer, ou melhor, o que não fazer: não fez as vontades de
Iracema pela primeira vez na vida.
Iracema
foi da ordem a suplica, pediu, mandou, implorou, gritou; por fim, recorreu ao
histerismo, mas não adiantou: Pacífico não se moveu do lugar, e o sorriso
misterioso de seu rosto não se apartou. Só restou à mulher, vencida, subir para
o quarto, esperançosa de que o raiar de um novo dia trouxesse de volta seu bom
e velho – e manipulável – Pacífico.
Na
manhã seguinte, Iracema desceu as escadas resoluta, pronta para mostrar quem
era que mandava naquela casa. Iria surpreendê-lo, arrancando-lhe os cobertores,
e com o dedo em riste declarar o ser fracassado que ele era. Passou a noite elencando os defeitos do
marido, sabia-os de cor para jogar-lhe na cara. Ele não passava de um fraco,
jamais teria coragem para enfrentá-la!
Mas,
ao erguer os cobertores, deparou-se com o
sofá vazio, sem vestígio de
Pacífico. Sobre o móvel, restava apenas um breve bilhete:
Provérbios 21:19
Intrigada, andou para a mesa onde permanecia aberta
a bíblia, por trinta anos, na mesma
página de sempre. Para sua surpresa – pois nunca teve antes a curiosidade de
ler o livro sobre o qual tanto discursava – percebeu tratar-se de Provérbios, e num instante
localizou o versículo 19, lendo-o em voz alta:
“É
melhor morar numa terra deserta do que com a mulher rixosa e iracunda”. Um ‘OBRIGADO!’
rabiscado ao lado deixava clara a conclusão do marido.
Iracema poderia ter morrido de raiva naquele mesmo
momento, mas o destino reservou algo ainda mais doloroso para seus dias:
Iracema
foi infeliz para sempre, pois não pode uma mulher rixosa e iracunda ser feliz
sem um homem pacífico para atormentar.
Suzy Rhoden