quinta-feira, 1 de maio de 2014

Infância Roubada II – O Conto


Nasceu pobre de recursos. Mas essa não foi a maior pobreza que o acompanhou na vida: nasceu pobre de afeto, rejeitado pela mulher que o gerou. Do pai nunca teve notícias, nem, crescido, desejou ter dele qualquer informação. Sabia o suficiente: além de rejeitá-lo, o pai intentou também matá-lo.

Dado a outra, para que o criasse, entendeu ainda no berço a maternidade, biológica ou não, como um laço feito de interesses ao invés de amor. Tinha, no lar adotivo, uma referência masculina, um pai de criação. Um homem que, na época de enviá-lo para a escola, julgou mais conveniente ofertar sua mão de obra em alguma fazenda local. Portanto, para o menino, definiu-se a paternidade  como sinônimo de exploração.

Empregou-o a própria professora da escolinha rural, mulher de “nobre” coração.  Tão generosa era que até copiava no caderno do aluno/empregado a lição diária , para que à noite, sozinho, sem qualquer auxílio, sob a luz do lampião, o menino fizesse as tarefas escolares - e tinha a obrigação de fazê-las bem feitas, pois Exigência era o sobrenome da Sra. Generosa!

Quatro horas da manhã, levantava-se o menino de sete anos. De pés descalços, atravessava os campos brancos de geada reunindo o gado. Sentia frio? Não sabia ao certo, não compreendia na prática o verbo sentir, nunca lhe fora dado esse direito. Apenas ia, fazia o que o tinham mandado fazer: buscar o gado e preparar as vacas leiteiras para a ordenha manual. A ordenha também era tarefa sua. Depois devolvia o gado ao campo, separando os bezerros de suas mães, para que fosse preservado o leite a ser ordenhado novamente no final do dia.

E seguia a lista interminável de tarefas a serem cumpridas por aquele menino, desprovido de tudo, até dele mesmo. Cansado, retornava para casa ao final do dia, onde o aguardavam os temas escolares. Tinha de resolvê-los.  Sozinho. Sem ajuda de pai, nem de mãe, nem de professora.

Ao final do mês, recebia seu dinheirinho suado, que era entregue integralmente ao pai  que o empregou. Por sinal, além de ensinar ao filho de criação o valor do trabalho, esse pai também ensinava a evitar o desperdício: jamais deu ao filho uma bala, um pirulito, um chiclete... desde quando criança precisava disso?! O dinheiro era para suprir as despesas da casa e, claro, para o traguinho diário no boteco, pois todo homem trabalhador tem seus direitos adquiridos...

Cresceu o menino. Sem amor, sem abraço, sem pai, sem mãe. Sem leis, sem proteção. Sem infância. Sem adolescência. Sem referência.

Tão logo cresceu, se multiplicou. E hoje ele está por aí, não apenas nos botecos rurais, mas também nos bares das cidades. Bebendo e brigando e matando. E furtando para poder beber mais. E para se drogar, pois com a multiplicação veio também a modernização... E, claro, ofertando suas crianças para fazerem qualquer coisa, em troca de qualquer coisa...

Não foi essa a lição que mais insistentemente lhe ensinaram a vida toda? Que não passava de uma moeda de troca, inútil para uns (pais biológicos), relativamente útil para outros (pais de criação, professora). Lição assimilada é lição passada adiante.

Suzy Rhoden

*Lamentavelmente, esta é uma história inspirada em fatos reais. E esse menino, propositadamente sem nome, é apenas um dentre tantos que circulam por aí, bem ao nosso lado...



9 comentários:

  1. Que triste e tão bem escrito esse conto! Pena seja verdade ainda para tantos meninos e meninas por aí! Pena mesmo!


    Bom te ver novamente! Saudades! beijos,tuuuuuudo de bom,chica

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  2. Pena mesmo ser este conto tão verdadeiro, amiga!!!! Lamentável isso! Creio demais na afirmativa "Lição assimilada é lição passada adiante." Por isso me preocupo tanto com meus meninos! Erros sempre temos, mas o "AMOR VERDADEIRO" não nos pode faltar!!!!

    Estou feliz com sua volta aqui... muito NOS agrada! Bj grande!!!

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  3. Amiga!

    Nesse conto, vc deu com maestria, o tom de realidade das muitas crianças desse país desastroso, incompetente, fraco das pernas... Teu conto, embora tenha origem num passado não muito distante, nos mostra que não evoluímos em nada no quesito humanidade. Isso é ainda pior quando penso no quanto evoluímos em outros campos, especialmente na informática cibernética que ‘aproximam’ pessoas, protestam numa só voz, levantam bandeiras, todos bem intencionados querendo salvar o mundo com seus blábláblás inúteis e intermináveis... Meio paradoxal isso, pois nunca estivemos tão cegos! Tudo envolto num véu que chamamos ‘cultura evolutiva’.

    Prá lá de assertivo esse conto no momento que estamos vivendo! A defesa que vc faz da família tradicional nas entrelinhas me arrepia... Uma defesa não tendenciosa, mas sociológica, filosófica até...

    Isso que eu chamo de uma volta em grande estilo!!! Mandou muito bem amiga, com todo vigor que lhe é peculiar! Mesmo retratando o amargo da vida, tua escrita é doce que nos proporciona prazer em saborear... Feliz por saber que contribuí (com o meu desafio persistente rsrs) para a tua volta!!

    Parabéns pela reestreia e pela ‘sacada’ de que vc faz muita falta para seus leitores!

    Beijão! A gente continua lá... (com um pouco de sorte, diariamente rsrs).

    Ps: Como se não bastasse, é um post de utilidade pública. Ô muié danada esse viu! rsrs

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  4. Oi Susy,
    A Suely disse praticamente tudo. Acho que a princípio estão faltando MÃES. Fiz questão de colocar em maiúsculo, por que Mãe=Amor. e pra quem falta amor, falta a estrutura, exemplo, direção.Núcleo familiar é tudo. A contribuição do estado seria de grande valia, para completar a formação até mesmo do caráter de nossas crianças. O que alcançamos até hoje, foram ajuda que de alguma forma suprem imediatas situações financeiras, como as famosas "bolsas" mas como disse são imediatas,apenas podem sanar a fome física, mas existe a outra fome que além do afeto, é a carência de cultura, esporte lazer, e isto teria que acontecer num sentido amplo atingindo escolas de todo o país, aliás já deveriam estar acontecendo à centenas de anos .A arte em todos os sentidos, deveria ser matéria básica aprofundada, com investimento sério, onde crianças teriam acesso obrigatório à música, ao esporte, com todos as modalidades, com ginásios cobertos, competições.Ah! que alegria ouvir o grito das torcidas. Quantos sonhos, ideais nascem dentro de uma quadra. O que existe é ainda muito superficial, para apenas cumprir horários. Estamos todos cansados? Pais cansados, professores cansados, governantes cansados? Este desânimo parece ser crônico. Devem existir soluções que alcancem não só as crianças das grandes cidades mas as do interior. O custo seria grande mas em poucos anos o resultado seria renovador e gratificante.Claro que já perdemos muitos jovens e ainda iremos perder muito mais, por conta dessa política do "umbigo". mas se não começarmos agora em pouco tempo seremos dizimados.
    Vejo crianças como cristais alguns tem a sorte de serem lapidados, na maioria dos casos, outras, são jogados à própria sorte, na lama e se arrastam até tornarem-se apenas pedras duras, recobertas de lodo pelos maus tratos, pelo desprezo à própria vida.
    Quem recebe nada, nada terá a ofertar.
    Querida Suzy, seu conto me emocionou tanto...
    Me fez buscar lá no fundo as raízes da situação que está instalada no nosso país. É grande a pena de sentir que vivemos uma realidade tão triste, tão ameaçadora, cada vez mais invasiva.
    Parabéns pelo seu brilhante retorno.

    Apesar de ser uma constatação triste, valeu. Emocionou e me fez refletir muito.
    Um grande abraço.
    Bom final de semana.

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  5. Suzy, tudo bem?
    Primeiro quero te agradecer pela visita ao meu blog, obrigada.

    Conto bem escrito e oportuno. Infelizmente, uma realidade brasileira e de muitos países. A tal infância roubada que se transforma em adulto desestruturado, famílias desestruturadas... rumos incertos e mundo duvidoso. E o descaso, mantém essa situação de abandono que parece só evoluir.

    Grande beijo!

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  6. Um conto que escancara a nossa realidade e a de tantos outros países. Exemplos serão seguidos e infelizmente esses, para o mal se multiplicam.

    Feliz com sua volta! Beijo.

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  7. Oi Suzy,
    Saudades \o/
    Muitas crianças tem a infância roubada, e salvo raras exceções,
    tornam-se adultos que carregam consigo feridas sempre abertas de uma época sofrida e humilhante.
    Histórias como esta narrada por vc, continuam acontecendo...
    Bjs.

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  8. OI SUZY!
    UMA HISTÓRIA, DA QUAL, ACHO QUE TODOS JÁ OUVIMOS FALAR, MAS TU, SUZY, COM TEU TALENTO A TORNASTE ÚNICA E EMOCIONANTE.
    GRATA AMIGA POR TEU CARINHO, MAS, PRINCIPALMENTE POR ESTARES DE VOLTA E ESCREVENDO TÃO BEM COMO ANTES.
    AH! NÃO PODIA DEIXAR DE DIZER QUE ESTÁS MUITO BONITA NA FOTO NOVA.
    ABRÇS
    http://zilanicelia.blogspot.com.br/

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  9. Oi Suzy, muito bom saber que você voltou a postar, eu estava sentindo saudades daqui.
    Parabéns pelo conto, tão bem escrito e retratando uma realidade.

    Beijos

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