quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A Casa da Esquina



Passei grande parte de minha infância em  típica comunidade interiorana, cuja vida no povoado se resumia  a praça central, cercada pela igreja, salão paroquial, escola e quadra de esportes. Pais e filhos mantinham encontro diário no local, em função da rotina escolar. Nos finais de semana, não era diferente, alterando-se apenas a motivação:  eventos religiosos ou esportivos congregavam a população naquela mesma quadra.

Cresci explorando aquele espaço como se fosse o quintal de minha casa. Conhecia cada palmo daquele chão, podendo descrevê-lo em detalhes mesmo após 20 anos de distância... Não havia mistério, nada ali era novidade. A não ser a assustadora e impenetrável Casa da Esquina.

Construída há mais de um século, na esquina que dava acesso a quadra onde tudo acontecia, a Casa ficava exatamente ao lado da igreja, tendo a frente voltada para a praça e a lateral para a escola. Impossível chegar ao vilarejo sem dar de cara com o imponente  prédio de outrora, então em ruínas. Impossível, da mesma forma, não ter o olhar assustadoramente atraído para escombros que convidavam à exploração... E repeliam, na mesma proporção.

Rezava a lenda que a Casa fora construída por família tradicional, pioneira no vilarejo. Tão magnífica era a construção, que a vila se desenvolveu ao redor dela, como numa silenciosa reverência a sua suntuosidade. Residiram felizes três gerações ali, até o falecimento do patriarca familiar e sua esposa, restando o imóvel como objeto de desejo dos herdeiros. Nunca houve acordo entre eles. A Casa nunca foi vendida. Nunca mais foi habitada – ao menos por seres de carne e ossos, segundo se sabe.

Eu tinha dez anos de idade e um fascínio sobrenatural pela Casa. Todos tínhamos. Todos fazíamos planos mirabolantes de incursão na residência, mas poucos tinham de fato coragem para executá-lo. Ouvia-se que aqueles que adentravam a Casa saíam de lá pálidos e monossílabos, negando-se a relatar o que viram com os próprios olhos. Falava-se em um caixão no mezanino. Vestes negras que, apesar do tempo inclemente, não eram corroídas, como se alguém aparecesse para trajá-las todas as noites de lua cheia.

Claro que os meninos de minha sala já tinham entrado na Casa. Não viram caixão nem nada porque, após dois passos pela sala, recuaram correndo. Gabavam-se, ainda assim, de sua ousadia. Decretamos que nós, meninas, não daríamos a eles o título de valentia da 5ª Série (atual 5º Ano) tão fácil: iríamos pelo menos até a sala de jantar.

Escolhemos uma bela manhã de domingo, depois da missa. Queríamos plateia em grande estilo, devidamente vestida para a ocasião. O ideal mesmo seria à noite, mas que pai ou mãe liberaria a filha de 10 anos para visita noturna aos fantasmas?! Não fez diferença alguma, lá dentro há tempos as sombras haviam se instalado e a luz solar era expulsa sem cerimônia. A escuridão nos recebeu tão logo colocamos o pé  para dentro.

Lembro do assoalho rangendo a cada passo, e das paredes imensas, descascadas, projetando sobre nós pedaços esfarelados de cimento, enquanto andávamos. O teto, ameaçador, emitia mensagens iminentes de desabamento, como se isso fosse suficiente para nos expulsar. Avançamos corajosamente, adentramos os cômodos, assustando os morcegos ali residentes.

Embora há muito não habitada, deixada para que ruísse, a Casa não abdicava de sua imponência. Ostentava ares de império, quase como se dissesse que, apesar da decadência, monopolizava todos os olhares e era, sim, alvo de cobiça. Os cômodos eram amplos, arrogantes, davam idéia de tudo que se viveu lá dentro em outra época, e a sensação era de que, se não andássemos com cuidado, de repente tropeçaríamos nos pés de seus nobres proprietários.

Finalmente, a visão tão esperada do mezanino, e a decisão silenciosa acerca de subir os degraus da mansão em ruínas, para ter acesso aos quartos e a sacada frontal. Sermos vistas na sacada seria a glória – inventaríamos a selfie há 20 anos atrás, certeza!

Avançamos pelos degraus, um tanto relutantes, sem saber ao certo o que encontraríamos... O caixão? As vestes negras? A escuridão e as teias de aranha, dispostas por toda parte, não nos deixavam ter visão clara do que havia em frente. Mas o som, vindo na forma de estalos regulares da parte superior da casa, tão logo começamos a escalada, foi algo inegável. Ouvimos e congelamos. Insistimos, e então veio a risada, algo entre o irônico e o macabro. Não houve assentimento silencioso dessa vez, a debandada foi aos gritos, rumo à porta de entrada. Uma lástima, pois eu já alcançava o último degrau naquele instante, liderando a trupe de meninas.

Chegamos esbaforidas ao lado de fora, minha roupa de domingo coberta de teias. Em minutos, os meninos nos cercavam, rindo e apresentando as pedras com as quais produziram  ruídos no telhado e no andar superior da Casa. De um deles, veio a gargalhada, nem tão irônica, nem tão macabra quanto nos pareceu lá dentro da casa. Só não perdemos de vez a credibilidade na turma porque, afinal, andamos bem mais do que dois passos lá dentro... Assim, o caso foi abafado.

Por que não organizamos nova incursão, já que os meninos assumiram a autoria dos sons reproduzidos? Porque ninguém, em momento algum, me explicou como se materializou, em vestes totalmente pretas, o ser que vi no mezanino da Casa. Só por isso. Mas quando souber de qual colega foi a graça, prometo que volto lá.


Suzy Rhoden

Obs.: A imagem reproduzida é meramente ilustrativa e não corresponde à verdadeira Casa da Esquina de minha infância. 





10 comentários:

  1. Suzy,que legal e essas casas ou parecidas fazem parte do imaginário infantil!Adorei bjs praianos,chica

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  2. Chica, quem não teve uma casa dessas na infância para explorar em suas fantasias, não sabe o que é terror de verdade! rsrsrs

    Acabo de voltar da praia, sempre bom demais! Aproveita aí, beijos!

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  3. Adorei adentrar a tua casa da esquina Suzy! E compartilhar teias de aranha, a invenção da selfie!
    Beijo

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    1. Obrigada pela coragem de vir comigo, Ana! rsrsrs
      Sempre bom te receber aqui... beijos!

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  4. Saudades de vc lá e daqui!
    Saudades sempre da infância que tive e pesar pela que vivem hoje em dia a maioria.
    Quintal ou praça central, cercada por uma igreja,, salão paroquial, escola e quadra de esporte hj é como as casas da esquina abandonadas e curiosidades poucas há dos pasantes.
    Adorei te ler e lembrar de histórias minhas.
    Beijos querida!

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    1. Saudades também, Tina! Vou lá, sim, só preciso me reorganizar... faz tempo que estou nessa né... desculpa! Como vês, quando sumo de lá, sumo daqui também...
      Mas, enfim, sempre bom relembrar as velhas histórias que nos fizeram exatamente assim como somos!
      Beijos

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  5. Ui! A leitura foi de dar arrepios na espinha!
    Acredita que nunca senti medo ao avistar uma casa desse tipo? Apenas tristeza, ruínas me causam essa sensação.
    Suzy, parabéns pela narrativa, uma delícia de ler.

    Beijos

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    1. Néia, que interessante seu olhar para as casas em ruína! Sabe, elas são tão singulares pra mim, cada uma desperta uma sensação... mas esta do texto, ah, era pura magia, convite irrecusável para a aventura! rsrsrs

      Obrigada pelo carinho, beijooo!

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  6. Que delícia de leitura, apesar dos arrepios, muito bem narrada, fiquei presa e voltei a ser criança na minha imaginação. Mas acredito que mesmo agora depois de adulta se me deparasse com alguma casa em ruína a sensação seria a mesma, e atração por lugares assim é um fato. A curiosidade em desvendar os mistérios, ou a vontade de experimentar sensações diferentes e provar nossa coragem, não parecem ter ficado lá na infância, acredito que ainda é igual. Que bom Susy que voltou a postar. Um grande abraço.

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  7. Querida amiga

    Das muitas lembranças
    que trazemos em nós,
    a da casa que nos viu crescer
    é inesquecível...
    Trazem a alegria que tínhamos
    em sua maior pureza...

    Que ainda haja estrelas em seu coração,
    é o que deseja minha vida para a tua.

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