terça-feira, 1 de maio de 2012

A Barraqueira de Gravataí



Na fila, à espera do intermunicipal que a levaria de volta para casa em Gravataí, Celeste repassava seu dia mentalmente. Acordara antes das cinco da manhã, como fazia todos os dias, pra preparar o café-da-manhã pra mãe idosa, a qual levantaria por volta de sete horas pra ouvir as notas de falecimento no rádio. Não havia quem a convencesse a ficar na cama até mais tarde nos dias frios, dizia que isso era mania de dondoca, coisa que ela nunca fora na vida. Claro que ela voltava para a cama antes das nove, e ora dormia, ora assistia TV, assim fazendo pelo resto do dia. Mas dondoca ela não era, pois acordava cedo e não havia quem pudesse dizer o contrário! Celeste sorriu diante desse pensamento, amava sua mãe e  suas manias. Fazia tudo por ela há muitos anos, desde quando a viu adoecer pela primeira vez. A situação só piorou, de modo que Celeste esqueceu de si mesma e passou a viver para a mãe e para o trabalho exclusivamente.


Bem, na verdade Celeste pretendia viver unicamente para a mãe e para o trabalho. Mas os vizinhos descobriram logo sua bondade. E então, sempre que alguém precisava de um favor, era para a casa de Celeste que corria. Ela não sabia dizer se eram seus olhos azuis que atraíam tanta gente, fato é que desde a falta de açúcar até a necessidade de uma babá em pleno feriado, lá estavam tocando a campainha de Celeste. Quantas vezes seu cérebro disse um NÃO veemente, enquanto seus lábios a traíam oferecendo um sorriso e um: será um prazer ajudar! A porta se escancarava e adentravam 1, 2, até 3 crianças para passarem com ela o dia.

Mas ela era Celeste, dizia sua mãe desde o berço. Tinha a obrigação de honrar o nome e ser a personificação da serenidade, da calma e da tranqüilidade. Suas atitudes não podiam, em hipótese alguma, contrariar a bondade do azul de seus olhos. Afinal, uma Celeste, celestial deveria ser. E ponto final, sem chance de vírgulas, reticências ou qualquer pontuação que desse margem a  argumentação contra seu destino traçado.

No trabalho, pouca coisa mudava. Ela era a invisível secretária, que chegava antes de todo mundo para garantir o funcionamento do escritório, e se despedia depois que todos já tinham partido, tendo a certeza de que nada falharia nos planos para o dia seguinte – nem para os próximos 10 anos! Discreta e eficiente, executava com perfeição tudo que o chefe solicitava. Raramente ouvia um obrigado, mas não se importava: não era movida por elogios, pra falar a verdade nem sabia o que isso significava. E se alguém elogiava algo nela, eram seus olhos meigos, dóceis, o que na prática era sinônimo de exploração iminente.

Na parada de ônibus, cansada e com frio, em tudo isso Celeste pensava. Não conseguia lutar contra a força do nome que carregava, nem minimizar os efeitos dos olhos tranqüilos. Podia seu mundo estar desabando por dentro, que as pessoas a viam celestializada. Não lhe davam chance de atitude diversa, tinha de agir como a bondade personificada. Era secretária no escritório, em casa e no bairro, por todos os lugares onde passava! Aquela que faz tudo silenciosamente, com um sorriso no rosto e ainda pergunta com o olhar: que mais posso fazer para lhe servir? Essa era ela, Celeste Maria dos Anjos.

Mas, embora poucos saibam, até mesmo as criaturas celestiais tem seu momento de anjo decaído, quando todos os bons princípios são esquecidos num ímpeto de fúria e rebeldia: Celeste teve  seu momento! Viu passar por ela, na longa fila do ônibus, uma madame toda vestida de rosa e lilás, falando ao telefone. Andava como se desfilasse na passarela, sobre salto 15, jogando os longos cabelos loiros para trás com a afetação de seu andar. Em uma das mãos o celular – rosa, é claro – e na outra, várias sacolas, indicando um longo e cansativo dia no shopping. Era disso, justamente, que a moça reclamava no instante em que ultrapassou Celeste na fila, colocando-se para dentro do ônibus como quem, em função do dia cansativo, seria facilmente perdoada pelo equívoco.

Pela primeira vez na vida, os olhos azuis de Celeste tornaram-se cinza e os Anjos deixaram-na sem nome e sobrenome para honrar: Celeste voou nos cabelos da mulher e arrastou-a para fora do ônibus, sem dó nem piedade. Diante dos olhares perplexos, levou a mulher de arrasto de volta para seu lugar na fila, onde a deixou sem qualquer palavra. Não precisava dizer nada, a mensagem fora dada, de forma clara e inconfundível.

Por estranha coincidência, a partir de então os vizinhos desapareceram de sua casa com seus pedidos abusivos. Até mesmo o chefe passou a tratá-la por Dona Celeste e, o que causa maior espanto, adotou as palavras mágicas por favor e obrigado em cada uma de suas solicitações! Na fila do ônibus, o silêncio imperava sempre que Celeste chegava, faltando pouco para, em estilo militar, fazer-se formação e bater-se continência para sua pessoa. Os olhos azuis eram os mesmos de outrora, mas acima deles, como que gravada por maquiagem definitiva, lia-se a palavra respeito.

Mal avistavam Celeste, já  espalhavam entre cochichos: lá vem a barraqueira de Gravataí! E ninguém se metia com ela. O interessante é que bastou um único barraco para se fazer cativo o título por toda vida... Eficiência de secretária!

Suzy Rhoden


12 comentários:

  1. rssssssssssss...Que lindo!Dei boas risadas por aqui.

    A pobre Celeste foi usada, abusada, maltratada por aproveitadores de todos os gêneros. Até que um dia acordou!!!

    Fez muiiiiiiiiiiito bem!!! Ninguém precisa ser capachilda a vida inteira!

    RESPEITO agora faz parte do modo dela ser olhada!

    Adorei!!! Parece bem real,srsr beijos,chica

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  2. kkkk, com esse nome até eu!
    Bem, existem tantas Celestes nesse mundo que de santo não tem nada. Penso que as Celestes se deixam usar por uma coisa muito simples: carência. Veja bem: quando que pessoas que se impõem vão ficar, assim, na bucha, com 3 crianças... na marra, deixadas sem avisar? Quando que alguém vai trabalhar, se mata, todos pedem tudo e ninguém agradece? Quando que pelos belos olhos azuis não consegue nunca dizer um não? Quando que alguém não espera um elogio, um reconhecimento por menor que seja por um trabalho bem feito?

    Ah, Suzy... eu ficaria de saída, igual a foto aí de cima. Amiga, e o triste, é que estas pessoas custam a se dar conta e quando explodem a coisa é feia! Mas a carência afetiva deixa as pessoas servis, demais. No fundo, elas querem ser reconhecidas, amadas.
    Mas você abordou muito bem o desenrolar da cabeça destas pessoas: ela aguentou tanto que a explosão foi na mesma proporção: uma bomba!
    Você pegou o 'nervo', e com muita sutileza. Deixou a interpretação para nós.

    Beijão, amiga, mandou bonito!
    Tais luso

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  3. Suzy, até a pessoa bondosa tem que impor limites, senão vira "a boba". Fiquei imaginando como eu reagiria nessa situação e acho que não teria a mesma coragem, tenho horror à barracos, mas, certamente, eu iria me dirigir à dondoca e lhe diria algumas palavras, só para não passar em branco,rsrs.
    Parabéns pela belíssima crônica, você sabe, como ninguém, prender o leitor do início ao fim!

    Beijos

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  4. Que beleza de crônica! Parabéns, Suzy, delicioso texto!
    Não consegui parar de ler! E vou querer ler todos os outros! A cada dia vou dando uma passadinha e lendo!
    Amei!
    De fato é assim que acontece: vc passa a vida toda agindo de um jeito que todos decoram, num belo dia vc muda um gesto e pronto, é o suficiente para lhe darem um rótulo eterno!
    Bjsssssssssss, quérida!

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  5. OI SUZY!
    JÁ QUE MORO DO LADINHO, EM POA, VOU ME CUIDAR PARA NÃO ENCONTRAR ESTA BARRAQUEIRA...
    ACHEI MUITO LEGAL ESTA CRÔNICA, NOS LEVANDO A PENSAR A RESPEITO. PORQUE O SER HUMANO NÃO PODE SER BOM, PURA E SIMPLESMENTE?
    POR QUE É, TAXADO DE BOBO E AS VEZES VAI A UM PONTO QUE A PESSOA QUE SÓ QUERIA SER BOA, NÃO ABUSADA, TEM QUE TOMAR UMA ATITUDE QUE, NA MAIORIA DAS VEZES VAI CONTRA SEUS PRINCÍPIOS, PARA PROVAR ISTO.
    EIS O SER HUMANO.
    ADOREI TUA CRÔMICA.

    ABRÇS

    zilanicelia.blogspot.com.br/
    Click AQUI

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  6. Oi Suzy :)
    Finalmente a 'Celeste' acordou pra vida.
    Ser dócil,não é sinônimo de ser boba...
    Adoro suas crônicas!
    Bjs!

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  7. Voltei...A mãe da Lelê é parecida com essa barraqueira de Gravataí,srrs beijos,linda semana,tudo de bom! chica

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  8. Adorei isso mesmo precisamos virar a mesa....
    Beijo Lisette.

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  9. Oi,Suzy! OMA é minha mãe, é como se chama vó em alemão.

    E foi legal por lá mesmo!
    Obrigado pelo carinho e pra ti também ,um lindo e alegre domingo das mamães. beijos,chica

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  10. Ah!Suzy!!

    rsrsr
    Que coisa, em?!!rsrs
    Mas a vida pede atitude.Não podemos dizer sim para tudo.E veja como basta uma coisa diferente,para as pessoas mudarem drásticamente!A achavam tão bondoza que abusavam dela,mas uma única atitude,e já rotularam como barraqueira!!
    Melhor se respeitar,assim todos nos respeitam.
    Beijos!

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  11. Há momentos em nossa vida que o lado Celeste de ser está falando mais alto como a Barraqueira de Gravataí...

    muito bom

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