quarta-feira, 13 de março de 2019

A Vítima Viva

Imagem Op9
Após repercussão da postagem denunciando a relação abusiva na qual vivi por 14 anos, recolhi-me em profunda reflexão por alguns dias. Porque o aprendizado é o grande propósito de tudo, e particularmente desejo saber o que tenho a aprender e contribuir devido às circunstâncias que me foram permitidas experimentar nesta vida terrena. Trago verdades.
A vítima morta, choca. A vítima viva, incomoda. 
Explico: quando nos deparamos com aquelas notícias do tipo capa de jornal, com a vítima assassinada, compartilhamos com emoji lacrimejante e revolta escancarada, reclamando do comportamento inaceitável do ser humano. Ficamos chocados. Mas por um segundo apenas, pois, para nosso alívio, já morreu mesmo e o problema agora é das autoridades na resolução do inquérito policial. Ah, claro que ainda cobramos a prisão dos assassinos. Cobrança virtual, da comodidade dos nossos iphones. E isso é tudo que podemos fazer.
Com a vítima viva não é assim. A vítima viva incomoda. Coloca o dedo na ferida social da omissão. Nos obriga a agir e reagir, porque quando a vítima viva chega ao extremo de denunciar publicamente é porque, sem dúvidas, ela já percorreu o longo e sofrido caminho do silêncio por anos. Ou vocês acham que a vítima tem como plano para o ápice da carreira o status de "a espancada que sobreviveu"? 
A vítima viva incomoda, faz todos olharem para o chão e silenciarem. Olhar de "o problema não é meu", "é briga de casal, não vou me meter", "é apenas uma criança querendo chamar a atenção, não precisa ser levado a sério", não é mesmo, Bernardo? Mas quem tem a coragem de olhar nos olhos da vítima e falar isso para ela? Ninguém. Porque falta a coragem de encarar a vítima viva e dizer o que realmente pensam: "não me importo com tuas dores, só me importam as minhas". 
A vítima viva é julgada e desqualificada. Ela mereceu. A vovozinha da semana, estuprada pelo genro aos 101 anos, não está sendo acusada de estar apaixonada pelo abusador e ter consentido a relação? Sim, há quem se levante para defender e apoiar o ato. Há quem se levante para apoiar tudo e qualquer coisa, quando a vítima esteve perto da morte mas sobreviveu para contar sua história. Se quer credibilidade, ela que apareça morta da próxima vez.
A vítima viva só quer chamar a atenção. Sim! Quer mesmo! Tem todo o direito e entende que tem o dever de fazer exatamente isso. Sente que lhe cabe a obrigação de denunciar e auxiliar outras nas mesmas circunstâncias para que identifiquem o ciclo do abuso e saiam dele enquanto há tempo. 
A vítima viva desnuda a realidade por trás do mundo virtual. "Como assim, e aquelas fotos lindas de família feliz?! Não me importa se você encheu o rosto de maquiagem para encobrir o olho roxo, se estava mancando por causa de ferimentos de chutes nas pernas, quero as fotos que enganam e te fazem "merecer" participar do meu grupo de ostentação, onde somos todos lindos, prósperos e felizes". "Se escancarou a verdade, sai do meu grupo, não te conheço mais, que vergonha, o que meus amigos de aparência vão dizer de mim?" O que não pode é desmantelar o mundo virtual dourado de ninguém.
A vítima viva, quando denuncia, está apenas querendo vingança sem pensar nos filhos, que acabam sendo expostos também - dizem por aí. Não importa se esses mesmos filhos viram, mais do que uma vez, o pai asfixiando a própria mãe, basta que ninguém saiba disso e teremos crianças preservadas, não é? Porque o que incomoda mesmo é o denunciar, não a violência vivida ou presenciada. Sufoquemos as vozes que insistem em se erguer com os mesmos travesseiros macios nos quais dormimos nosso sono com consciência não tão limpa quanto fazemos parecer (perdoem o trocadilho, não resisti). 
A vítima viva incomoda, porque quando ela denuncia o crime do agressor, ela aponta também a covardia e a omissão social, ela força a sociedade a reagir, e esse é o momento em que todas as máscaras caem e as pessoas mostram quem elas realmente são e aquilo que defendem. 
A vítima viva incomoda, sim. Muito. Que bom!

sexta-feira, 8 de março de 2019

Violência Doméstica: quando recomeçar é necessário!


Das Dores, frente ao espelho, viu-se realmente bela pela primeira vez. O terno preto, discreto como pedia a ocasião, caía-lhe perfeitamente bem. Tinha os cabelos presos em trança embutida lateral, penteado que aprovou com um sorriso. Acessórios cuidadosamente escolhidos completavam o elegante visual. Estava linda, não havia dúvidas! Sentia-se plena, o que de fato importava.

Com o dedo indicador, roçou a pele na altura dos lábios, onde encontrou, encoberta pela maquiagem, uma cicatriz. Não podia vê-la, mas sabia que estava ali. Suplantada, vencida, sobrepujada. Era o símbolo externo daquilo que  lhe ia por dentro: tal qual a maquiagem em relação às imperfeições da pele, sentia a alegria curar as feridas da alma. A felicidade era seu trunfo, sua mais solene vitória!

Mas faltava algo, um último confronto. Não diziam que os piores medos são dissipados após o enfrentamento? Ali estava ela, corajosamente disposta a enfrentar-se no espelho. Precisava daquele supremo momento de retorno ao passado, mergulhou na linha do tempo.

Em questão de segundos, os olhos vivos e radiantes repousaram sobre uma pobre e acuada criatura: Maria das Dores, moça humilde do interior. Casara-se cedo, com o primeiro namorado, um homem mais velho e muito vivido. Logo viu-se grávida e, portanto, impedida de prosseguir com os estudos. Uma pena, diziam as professoras, pois sempre fora muito inteligente, uma espécie de mente inquieta. Que se aquietou, contudo, quando o marido começou a proferir aos brados quem é que mandava em casa. Maria das Dores anulou-se, passou a viver em função dele. 

Não demorou para começarem as agressões. Primeiro psicológicas, depois físicas, num ciclo intercalado por momentos de falso arrependimento e hábil manipulação. Dependente do marido de muitas maneiras, Das Dores viveu uma fase de negação. Dizia a si mesma que ele havia perdido o controle por um momento, mas aquilo não voltaria a acontecer; que era um homem bom, não teria agido daquela maneira se não estivesse sob a influência do álcool. Os abusos continuavam, contudo, por motivos banais, com ou sem bebida. Das Dores não contou a ninguém, sentia vergonha. Optou por vida cada vez mais reclusa, afastou-se até dos familiares e amigos próximos para não ter de explicar a origem de  hematomas que surgiam misteriosamente em seu corpo.

Por que aceitava e se submetia daquela maneira ao seu agressor? Não sabia. Não naquela época. Mas agora entendia que não se pode esperar conduta diversa de mulher fragilizada, em situação de completa  vulnerabilidade. Quando se está dentro do ciclo de abuso, a violência torna-se naturalizada e a vítima perde o discernimento, não entende a proporção e a gravidade de tudo e, principalmente, ainda que se dê conta, não tem condições psicológicas de quebrar o ciclo. 

Sentia-se só e realmente não via a quem recorrer. Como falar de algo tão íntimo pra alguém? Chamar a polícia significaria a rua inteira diante de sua porta... Como olhar para os vizinhos depois do espetáculo? Vergonha. E medo também. Medo do futuro incerto, com suas crianças ainda pequenas... Se denunciasse o companheiro, teria obrigatoriamente que se separar dele. Para onde ir? Como sustentar seus 2 filhos? Aos 25 anos, nada tinha que lhe pertencesse, nenhum ofício que lhe garantisse o pão de cada dia, nem qualquer perspectiva profissional. Estava presa, definitivamente atrelada ao seu agressor.

Os dias passavam e a situação de Das Dores só piorava. Tratada como objeto, a mulher vivia para satisfazer as vontades de seu possuidor.  No lugar de marido, tinha um dono, a quem devia subserviência. Não ousava erguer a voz para ele, pois no fundo se sentia culpada e responsável por tudo: não se casara por amor e sim para fugir de um lar onde a mãe vivia em sistema de escravidão enquanto o pai gozava de plenos poderes, inclusive o de maltratar a esposa quando lhe parecesse conveniente – de preferência, humilhá-la na frente das visitas. Das Dores jurava que sua história seria diferente, que havia escolhido um bom homem. Em menos de um ano, porém, quando as máscaras caíram, a pobre mulher viu que os personagens haviam mudado, mas o enredo era exatamente o mesmo e, o que era pior, ela não via qualquer possibilidade de um “final feliz”.  Aceitou a amarga sina, resignou-se dizendo pra si mesma que seu destino fora traçado no dia em que a mãe, prevendo lágrimas, declarou perante o escrivão: Maria das Dores Silveira. E assim foi.

Mas houve um momento em que todos os limites foram ultrapassados e Das Dores viu-se obrigada a agir! Fora atingida na altura dos lábios, por objeto arremessado por seu companheiro durante  ataque violento. O sangue jorrou abundante, manchando a parede, e ela em choque começou a gritar. Os vizinhos acudiram, chamaram a polícia, e os policiais levaram-na ao hospital. Onde estava o valentão naquele momento crucial? Ficara ali para cantar de galo e justificar sua atitude para a polícia? De modo algum, fugiu pelos fundos de casa, saltando muros e rastejando como rato pelas propriedades alheias. Sabia que seu ato era, sob qualquer circunstância, injustificável, e que seu destino seria a prisão caso fosse encontrado em flagrante delito. Fugiu, experimentando por sua vez o medo que por anos  incutiu na mente frágil e inocente de Das Dores.

Conduzida a delegacia, Das Dores registrou Boletim de Ocorrência, através do qual solicitou medidas protetivas e demonstrou seu desejo de representar contra o agressor. Não sentia o chão debaixo dos pés, seu mundo havia desabado. Ao mesmo tempo em que sentia o alívio –como alguém mantido por anos em cárcere privado sente ao reencontrar a liberdade – experimentava a incerteza, a confusão de sentimentos, a absoluta falta de perspectiva para o futuro. Sentia-se fracassada, uma incompetente, que não soube escolher um companheiro digno de seu amor, nem um pai decente para seus filhos. Estava machucada por fora e destruída por dentro, duvidava que para ela pudesse existir um amanhã.

A dor extrema por vezes é justamente o impulso necessário para o recomeço. Das Dores pensou em suas crianças e viu ali um ponto de partida, ao invés do ponto final. Por eles, ela renasceria; encontraria forças para redirecionar sua vida. Pensou também nas outras mulheres, vítimas silenciosas das mesmas agressões que por tanto tempo ela sofreu calada e desejou fazer algo... Não percebeu na época, mas foi ali, naquele exato instante, que ela tomou as rédeas da própria vida e começou a moldar seu destino do jeito que ele deveria ser.

Nem tudo são flores para a mulher que rompe o ciclo de violência doméstica. Para falar a verdade, a primeira etapa é marcada apenas por espinhos. Há  necessidade de reconstrução em todos os setores da vida. Das Dores precisou de coragem, muita coragem! Pois, passado o primeiro momento, ressurgiu o marido dissimulado tentando reconciliação. Ofereceu todos os motivos para o retorno, fez promessas, implorou por perdão. Como não obteve êxito, mudou a estratégia: passou a ameaçar, impôs a ela implacável perseguição.

No princípio, ela acreditou que com a denúncia todos seus problemas estariam resolvidos. Não funciona assim. Aprendeu com a experiência que, apesar da boa vontade de maioria dos servidores, os recursos que o Estado disponibiliza para a mulher nessas condições  são limitados. E muito dependia dela, de sua atitude. Foi inflexível, não se deixou levar pelas lisonjas do ex  companheiro nem pelas ameaças que vieram na sequência, mas precisou redobrar os cuidados. Enfrentou o julgamento de pessoas próximas que, na hora em que mais precisou, simplesmente desapareceram. Uns porque não queriam se meter, outros porque, carregados de machismo, diziam aos quatro ventos: alguma ela certamente aprontou! Poucos de fato entendem que, perante a le e os céus, não há justificativa aceitável para a agressão a mulher: será sempre um crime e uma covardia.

Avaliando a sociedade machista na qual foi criada, Das Dores entendeu porque muitas mulheres silenciam como ela se silenciou por anos. Medo e vergonha são os principais fatores. Dependência emocional também, pois o agressor utiliza-se  da intimidação e da manipulação. Algumas mulheres dão os primeiros passos, mas perdem sua força diante da ineficiência do Estado e do despreparo de alguns servidores, e acabam voltando para os braços de seu algoz. A mente inquieta de Das Dores, livre do cárcere, voltou a questionar a sociedade e não se conformou com o que viu: retomou os estudos, formou-se em Direito.

Mas sua missão  não estava cumprida: não lhe bastava advogar em favor de mulheres em condição de extrema vulnerabilidade, queria ser a responsável pela elucidação dos fatos, trazê-los à tona, para levá-los ao juiz  embasados em provas concretas contra os agressores. Queria poder dizer, através de ação diária, que carregava a causa das mulheres vítimas, sem dar-se ao luxo de julgar os casos, mas dando voz a todas elas para que tivessem a oportunidade de quebrar o ciclo de violência em seus lares. Queria também servir de exemplo para aquelas que, fragilizadas, se sentiam incapazes de olhar para o futuro e sonhar; queria mostrar que todas têm seu valor e que podem, a qualquer tempo, tomar as rédeas da própria vida e realmente viver, trabalhar, estudar, vencer!

Das Dores, frente ao espelho, viu-se como de fato sempre foi: mulher guerreira, valente, disposta a enfrentar as agruras da vida com cabeça erguida, consciente de seu valor. A mãe não estava errada, as dores fariam parte de sua existência... mas apenas como lembrete, para que  nunca se acomodasse, e então aprendesse que amor próprio e felicidade não caem do céu: são conquistas a serem feitas diariamente!

Com olhar firme, despediu-se de Maria das Dores através do espelho. Seu nome agora era Maria Vitória, Delegada de Polícia, lotada na Delegacia de Atendimento à Mulher. Virou as costas e andou com passos resolutos na direção da porta. Havia muito a comemorar naquela noite de formatura.

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