Não
importa a época escolhida, exceto na primeira infância: qualquer retrospecto de
minha vida me levará ao mesmo local, a sala de aula. Inicialmente como
aluna, o que se estendeu dos 6 anos a
idade adulta. Então me formei professora e a mudança que se deu foi unicamente
na posição que eu ocupava dentro daquele mesmo espaço, passando do fundo para a frente, como alguém da platéia que de repente é convidado a
subir ao palco e comandar o espetáculo.
Esta
semana, que celebra na teoria o Dia do
Professor – visto que na prática pouco há para se comemorar – evoca uma série
de lembranças em mim. Mergulho no baú do tempo e encontro intactos, embora um
tanto amarelados pela passagem dos anos, os grandes acontecimentos de minha
vida escolar.
Guardo
poucas lembranças do meu primeiro ano,
sei que também foi o primeiro e único ano na escola da professora que me
alfabetizou. E que ela era novata. Entendo perfeitamente as motivações da
coitada para desaparecer da comunidade tão logo tenha encerrado o ano. Era uma
humilde escola na zona rural, desprovida de recursos e de investimentos do
governo. Distante até mesmo da vila onde passava o ônibus, não restava ao
professor opção senão hospedar-se na casa de algum aluno durante a semana.
Aceitavam a designação para o trabalho naquela região dois grupos de
profissionais: os corajosos, em busca de aventura e novas experiências na
carreira; e os desesperados por um emprego, iniciantes na trajetória
profissional, que topam qualquer coisa até conseguirem algo melhor. Caso da referida professora, que ao final do
ano ou foi promovida para escola com acesso facilitado, ou mudou de profissão.
Fato é que aprendi a ler e a escrever, e muito rápido! Mas minha lembrança da
primeira professora nada tem a ver com a didática de sala de aula, e sim com a
falta de psicologia infantil.
Formamos
fila, após o intervalo, para retornarmos a sala de aula, e ali mesmo na fila
ela nos deu sermão memorável. Reclamava
dos muitos bilhetes e cartões que recebia da gente, dizendo que não tinha mais
onde guardá-los. Pediu que limitássemos nosso afeto por ela. Pelo menos, foi
isso o que entendi. E obediente como eu era, foi o que fiz. Hoje sou mãe e
professora, recebo bilhetes, cartões, flores, papel de bala, de bombom,
chiclete, maçã, laranja e um longo etc de demonstrações de carinho. Recebo tudo.
Jamais rejeito uma oferta espontânea de carinho. Se guardo cada mimo, não
importa. Depois de recebidos, os presentes são meus e posso dar-lhes o fim que
me parecer mais conveniente. Mas rejeitá-los ou limitá-los, jamais. Essa foi a
lição mais importante, deixada por minha amada – com restrições – primeira
professora.
Então
veio a segunda profe, como um anjo que cai do céu na vida da gente. Atenciosa,
paciente, exigente na medida exata. E o mais importante: amava nossos cartões,
sorria e agradecia com sinceridade! Minhas memórias não alcançam seu desempenho em sala, mas
guardam um momento de extrema sensibilidade, que em meus 7 anos presenciei: a
mãe de uma colega veio a falecer exatamente no dia de piquenique programado para toda escola.
Estávamos reunidos com nossos brinquedos, na agitação típica dessas atividades,
quando nossa professora se aproximou entristecida. Tinha uma das missões mais
difíceis de sua vida a cumprir. Levou minha coleguinha Lucia para um canto
reservado, pegou sua mão e olhando em seus olhos com ternura e profundo pesar,
deu-lhe a trágica notícia. Não ouvi as palavras, mas li tudo nos olhos de
ambas, que eu observava à distância, e o que vi foi dor quase insuportável nos
olhos de uma, e empatia absoluta nos olhos de outra. Aprendi que as maiores
lições de um professor geralmente dispensam o quadro-negro.
Essa
professora, uma corajosa, ficou conosco até eu avançar da quarta para a quinta
série e mudar de escola. Fez uma grande diferença em minha infância, pela
pessoa que ela era. Acredito que meu amor pelos livros tem algo a ver com sua
postura e pela magia que criava em torno da minúscula biblioteca. Era ali meu
local preferido, meu mundo encantado. E ele certamente me foi apresentado por
um mestre que o conhecia bem.
O
Ensino Fundamental me leva para as aulas de Português e Literatura, sempre
recheadas de criatividade. Na verdade, nossa sábia professora nos dava
liberdade para a criação, e isso me fazia amar as aulas. Nunca esquecerei, por
exemplo, da crise de risada durante a apresentação de A
Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, cujo conteúdo traduzimos em letras
de música. Muitos anos se passaram e ainda sou capaz de cantar ‘Augusto enganou
as mulheres...’, no ritmo de Peace,
Jimmy Cliff, sucesso do momento.
O
Ensino Médio deixou todo tipo de lembranças. Havia um professor, que deveria
ser o meu preferido, pois com ele recebi todos os 10,0 possíveis a um aluno.
Excelente professor? Não. Excelente memória a minha, pois decorava cada vírgula
dos conteúdos que ele ditava, e apenas ditava, sem qualquer explicação. Seguia
o conteúdo uma lista de perguntas, facilmente respondidas com o texto, bastava
reproduzi-lo. E assim era nas provas. Eu acertava tudo, pois memorizo textos
facilmente. Mas aprender mesmo, só no último ano, quando trocamos de professor.
Não sei como a competente substituta desse ‘mestre’ preguiçoso se virou para
dar-nos um intensivo de 3 anos em 1, mas ela o fez, pois passei com honra em
Biologia no vestibular.
Um
acontecimento crucial desse período foi o flagra de minha professora de
Matemática em meu namorado, quando ele escrevia meu nome na parede da sala.
Coisa de adolescente apaixonado. A bronca estava garantida. Mas para minha surpresa
o motivo da repreensão não foi o ato vândalo e sim a possibilidade de eu,
enamorada, interromper meus estudos e
deixar de prestar vestibular em universidade federal, como todos me
incentivavam a fazer. Ela foi enfática: “Não vá atrapalhar os estudos dessa
menina, ela tem um futuro brilhante pela
frente!” Ele realmente não me atrapalhou, pobrezinho, pois no último dia de
inscrições para o vestibular na Universidade Federal de Santa Maria lembrei das
palavras da professora e efetuei minha inscrição. Alguns meses depois fiz as
provas, fui aprovada, mudei de cidade, comecei o curso. E terminei o
namoro. Aprendi que um verdadeiro mestre
olha para nosso potencial e nos ajuda a ver as asas em desenvolvimento, que
ainda não sabemos usar sozinhos.
Meus
bons professores prepararam-me para o vestibular e para a vida. Na época, só me
interessava o conhecimento dos livros, e esse recebi, mesmo em escola pública,
com competência suficiente para ser
admitida em universidade federal, sem a necessidade de cursinhos ou
investimentos preparatórios. Outros tempos, claro, pois não vejo a mesma
possibilidade para meus filhos. A preparação para a vida só percebo hoje,
quando olho para trás e vejo muitos
valores compartilhados nas entrelinhas dos textos que interpretávamos.
Estudei
e tornei-me professora, tendo muitos modelos para seguir e outros dos quais eu
definitivamente queria ser distinta. Fui novata, como minha primeira
professora, e certamente incorri em erros que foram corrigidos ao longo da
carreira. Aos poucos, fui definindo meu perfil de educadora. Aperfeiçoei meus
métodos, fundamentei minha didática. Ensinar tornou-se parte de minha missão
pessoal e não apenas profissional, como algo que me realiza, me desafia e me
encanta. Tal qual o artista que pisa no palco para o mesmo espetáculo pela
centésima vez, e ainda assim sente a emoção daquele momento, é a minha apresentação
em sala de aula. Sempre uma nova interpretação, das mesmas falas.
Profissão
linda, acima de todas, pois forma qualquer outra, e é inexplicavelmente
desvalorizada. Infelizmente permite, pelas condições atuais de trabalho, que alguns
dos melhores mestres busquem novas áreas onde empregar seu conhecimento.
Aqueles que permanecem, ou se acomodam numa vida ranzinza e amargurada de quem
trabalha muito e recebe pouco, o que explica – mas não justifica – a existência
de professores mal-humorados e descontrolados por aí; ou se destacam, fazendo
ainda mais e melhor do que lhes é requerido, encontrando na realização pessoal
a motivação para a batalha injusta de cada dia.
Para
esses, bravos representantes de uma categoria sofrida, desço humildemente do
palco neste momento e volto a ser platéia: recebam meu aplauso, professores!
Suzy Rhoden
Gravataí, 13 de outubro de 2011
Linda homenagem aos professores abnegados e tão esquecidos pelos governos e ainda assim, estão lá, educando, ensinando gerações...
ResponderExcluirbeijos,chica
Suzi... todos temos nossas histórias pra contar; umas com bravos e queridos professores; outras, um desastre. Enquanto uns nasceram com o dom de ensinar, outros nasceram para não ensinarem - nada! E conservo todas minhas lembranças, inclusive daqueles que não nasceram para transmitir nada. Mas com eles aprendi muito: que não devemos fazer nada por obrigação, sempre dá errado. E aprendi. Tive professores maravilhosos. Gostei de minha vida de estudante.
ResponderExcluirMas saindo da minha vida e entrando no final de teu texto... Você me emocionou, amiga! Seu último parágrafo foi de arrepiar! Além de ser belo, é extremamente agradecido. E gratidão é um dos mais lindos sentimentos. Parabéns! Mandou bem!!
Grande beijo!!
Tais Luso
Suzy, que texto emocionante! Embalada por suas lindas lembranças, acabei por trazer à memória alguns professores que acrescentaram tanto à minha vida. Fico feliz em saber dessa sua consciência em relação ao ensino e o quanto os professores são importantes na formação do caráter dos seus alunos. Parabéns a você e a todos os mestres que lutam com dedicação e entusiasmo pela educação no Brasil.
ResponderExcluirBeijos
Suzy, amei seu texto, parabéns, é uma pena que não tenho tempo no momento para dialogar com você sobre seu texto, devido as mil atividades do meu cotidiano, mas mesmo assim reservei um tempinho para ler e refletir acerca das suas belas e verdadeiras palavras.
ResponderExcluirRealmente as nossas lembranças nos levam ao nosso cenário de sala de aula, porém com outro olhar e outras atitudes.
Parabéns pela mensagem do texto, e que sejamos sempre professores orglhosos da nossa sofrida e ao mesmo tempo maravilhosa profissão.
Um beijo no coração e parabéns para todos nós lutadores pela educação!
Lisi
OI Suzi,
ResponderExcluirque linda homenagem!
Acredito que, todas as pessoas que conseguem valorizar este profissionais tão especiais em nossas vidas, é porque já conseguiram evoluir na nossa pequena tragetória humana.
Abraços e ótima semana!
Profe Suzy, obrigada pelo carinho e parabéns pelo blog.
ResponderExcluirLendo o texto em nossa homenagem passou uma novela da minha trajetória como estudante e posteriormente como profissional.
Grande beijo
Mari
Voltei pra agradecer os carinhos e desejar lindo dia, semana e tuuuuuuuuudo de bom,chica
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