sábado, 31 de maio de 2014

Nasce um Escritor


Sento-me à escrivaninha para escrever, mas pouco escrevo.  Tenho companhia. Não é meu acompanhante, porém, quem me distrai: é justamente sua concentração que me rouba de meu próprio texto.

Meu filho nº 2 escreve ao meu lado. Com o canto do olho, observo seus dedos ágeis, deslizando do início para o fim da linha, numa intimidade absoluta com as palavras! Intimidade que me deixa um pouco constrangida, pois a gente cresce e desaprende a escrever: fica horas olhando para a tela em branco, caçando em algum compartimento secreto da mente um fiozinho de inspiração, para persegui-lo e num repente jogá-lo no espaço vazio.

Meu menino de sete anos não tem esse problema. Escreve o que lhe vem aos lábios sussurrantes – batalha ou batalia?, pergunta ele para si mesmo. Quando penso em dar-lhe a resposta, percebo que os dedinhos já tomaram uma decisão: seguem, resolutos, seu percurso de linhas e parágrafos. Não se demora no tropeço da grafia, quer mesmo é contar de uma vez sua história.

Vocabulário não lhe falta, observo, enquanto seu texto se forma. A impressão que tenho, sinceramente, é de que está usando todas as palavras – não sobra nenhuma pra mim! São todas súditas dele, meu escritor em desenvolvimento, em franca expansão de talentos.

Subitamente, os olhos negros e grandes como bolitas repousam sobre a tela branca a minha frente: “Mãe, cadê teu texto? O meu já está quase pronto!”, e sorri com satisfação. Com a dignidade de um exímio escritor, cumpridor de sua responsabilidade.

Intimidada, reservo-me ao silêncio que me cabe. Como vou competir com imaginação tão fértil e tão pura?! Se minhas palavras, para existirem, precisam ser selecionadas e lapidadas, enquanto as dele simplesmente fluem...

Não sou boa o bastante, há muito deixei de ser menina. Preocupo-me com enfeitar a história, por isso às vezes fico muda: pura falta de acessórios! Meu garotinho, pelo contrário, preocupa-se apenas com o prazer de contar.

E conta com tamanho encantamento, dando vida a suas criações, que as batalias – sem lh – tornam-se meros entretenimentos  rumo ao grand finale de seu herói ninhja – com nh. Objetivos  atingidos, alguém duvida?

Que cresça, mas não desaprenda o que realmente importa. Que seus tropeços sejam sempre insignificantes, diante do tamanho de sua criatividade!

Suzy Rhoden


domingo, 18 de maio de 2014

Como Nasce um Leitor

Arquivo Pessoal
Das alegrias que trago na vida, uma das maiores é ter três filhos leitores. Mas como se deu o milagre, afinal? Como nasce um leitor?
Não há manual e muito menos fórmula mágica, isso é consenso. Mas existem caminhos que irão aproximar nossos filhos dos livros, os famosos estímulos. Daí ao apaixonar-se é uma questão de tempo: cada criança tem o seu momento.
Uma amiga, por exemplo, postou em seu blog Diariamente que descobriu seu livro favorito aos 13 anos, com o romance Música ao Longe, de Érico Verissimo. Por coincidência, esse mesmo livro marcou também minha vida: significou minha transição da literatura infantil para a juvenil. Por dias, andei com a personagem Clarissa rumo a maturidade,  descobrindo, tal qual a protagonista, novos sentimentos dentro de mim. Clarissa foi verdadeiramente uma companheira de descobertas em minha adolescência.
No entanto, meu nascimento como leitora se deu mais cedo, com obras praticamente desconhecidas, das quais sequer lembro os autores! Os Desastres de Sofia ocupa espaço importante em minha estante mental; Memórias de um Burro era o inesquecível livro que líamos em grupo, na biblioteca da escolinha; A série Vagalume  veio com toda força por volta de meus 10 anos, e foi fatal: fez de mim, além de leitora, uma devoradora de livros!
Não cito os clássicos, embora eles tenham surgido posteriormente em minha vida e tenham fortalecido meu gosto pela leitura. Mas cito obras de meu interesse na época, que me fisgaram por alguma razão. Considero esse um ponto fundamental para que se nasça genuinamente um leitor: interesse pessoal pelo assunto. Alguns gostam de ficção, outros de matéria jornalística. Uns se apaixonam por contos e crônicas, outros só vêem encanto na poesia. Que assim seja no primeiro momento! Pois depois de nascido o leitor, ele aproveitará, de alguma forma, qualquer coisa escrita que lhe cair nas mãos.
Pais conscientes preparam o caminho. Quem, ao descobrir-se grávida, optaria por um livro como o primeiro presente a ser comprado para seu primogênito? Minha amiga, já citada acima, o fez. Que linda maneira de dizer em gestos: filho, além de  dar-te a vida,  dou-te o mundo. Toma, descobre-o por ti mesmo!
Outra amiga, Pedagoga, sentenciou: somos para eles o espelho. Se lemos e expressamos prazer na atividade de leitura, eles tenderão a experimentar o mesmo. Um ambiente acolhedor e interativo geralmente é fatal: eles viciam!
Meus filhos já estão viciados, tive hoje a prova: Sofia pediu-me para ler uma história de sua escolha, enquanto seus irmãos olhavam desenho animado. Na mesma hora em que abrimos o livro, os meninos pausaram o desenho e se aproximaram. Um deles para protestar: “Mãe, estou na metade desse livro! Se você ler pra Sofia, já saberei a história”. Sugeriu que escolhêssemos outro livro, e assim o fizemos. Sem que tenham sido convidados, juntaram-se a nós e passamos um maravilhoso tempo juntos, cada um lendo um parágrafo.
Ainda que os interesses mudem com o passar dos anos, e que a leitura não aconteça com a mesma avidez, estou certa de que, formado o pequeno leitor, ele não mais  abandonará o hábito da leitura:  descobertas as asas, elas serão sempre usadas.
Não há, portanto, um milagre: um leitor não nasce da noite para o dia. Mas, conforme os estímulos que recebe, vai se desenvolvendo e se autoafirmando. Bons professores na escola lapidam esses leitores em formação, refinam o gosto, ampliam a visão e a interpretação.
Bem cedo na vida, teremos o retorno do tempo investido: eles farão questão de ler pra nós! Serão pássaros que voam longe, que voam alto, mas que farão questão de voltar para o ninho. O ato de ler para nossos filhos ensina também a gratidão.

Suzy Rhoden

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Mãe em Tempo Integral


Tive férias diferentes neste ano. Férias em casa. Pois aconteceram em período letivo: as crianças não estavam apenas em aula, mas em período de avaliações.

Aparentemente, eu não teria nada a responder aos colegas, quando curiosos me crivassem de perguntas do tipo: ‘E aí, o que fez? Para onde viajou? Que lugares conheceu e explorou? Quais  peças, shows, espetáculos assistiu?’

Mas eu tenho, sim, todas as respostas. Nesses dias, eu fiz ser mãe em tempo integral. Foi a melhor e mais prazerosa viagem de toda minha vida! Conheci melhor meus próprios filhos – sem despesas com vôo, hospedagem, restaurante... E por falar em restaurante, conheci melhor os livros de culinária que empoeiravam em casa. Foi divertido baixar receitas novas da internet e deixar os pequenos participarem das descobertas... Por milagre, acabaram as férias e a cozinha não explodiu! Ou ela só não explodiu porque já acabaram as férias...

Explorei parques, zoológicos, sítios, fazendas, e tudo de que três crianças precisam para gastar energia nos finais de semana. Melhor ainda foi a exploração do universo deles, que se deu muitas vezes dentro das paredes de nosso próprio lar: vi o quanto crescem em estatura, inteligência e sabedoria! Observei e fui observada, ensinei e fui ensinada.

Empreendemos uma curta viagem, numa verdadeira aula prática de História da Família: visitamos minha cidade natal, passando pela casa onde fui criada, a escolinha onde aprendi a ler, e daí à escola maior, onde concluí  meus estudos primários. Aproveitei para reencontrar familiares e amigos de infância, primos que não via há muitos anos, tios tão queridos.  Que viagem poderia ser mais marcante para minhas crianças do que lhes oferecer sua própria história familiar, suas origens?

O mais especial, contudo, foi assistir de camarote às melhores ‘peças’ de minha turminha – eu mesma presenciei, não foram trazidas a mim pelos olhos da babá ou da professora.  E não apenas assisti, mas participei ativamente: maioria dos shows foi interativo, envolveu a família inteira!

Nesse curto prazo – pois eu queria que durasse para sempre – vi meu filho, de sete anos recém feitos, transformar-se em leitor devorador de livros! Sim, eu o vi avançar para a fluência absoluta na leitura através dos livros que ganhou de presente ou que trouxe da biblioteca da escola. E, descobrindo-se capaz de ler sem tropeços, eu o vi ler um livro inteiro numa única noite – livrão para o seu tamanho – gritando entusiasmado do quarto, a cada etapa vencida: manheee, virei mais uma folha!

Vi esse mesmo menino sair correndo para procurar, dentre seus livros infantis, O Pé de Pilão, quando ouviu Mario Quintana ser citado em reportagem na TV, na data que marcava os vinte anos da morte do escritor: queria mostrar para os colegas e a professora o poeta preferido da mamãe.

Também vi meu primogênito lendo poesia e arriscando seus próprios versos. Um garoto até então muito tímido, mas que correspondeu ao desafio da professora da Primária a preparar seu próprio discurso para o grupo. Lemos, debatemos, oramos por inspiração, e ele redigiu seu texto. Depois, apresentou-o para a classe. Tão confiante estava naquele domingo que, para minha grande surpresa, me perguntou se poderia compartilhar o mesmo discurso na reunião geral, para todos os membros da igreja!

Ainda ouvi de minha menininha que quer ser professora na escola onde estuda, uma professora de balé. Tão pequenina e já sabe ensinar, de forma surpreendentemente didática, as primeiras noções e os primeiros exercícios de uma bailarina... Deu-me aulas diversas em casa!

Acompanhei os temas escolares, às vezes por manhãs inteiras. Incentivei-os nos estudos para as provas e cobrei comprometimento e resultados, como uma mãe que ama precisa cobrar. Foi maravilhoso ser mãe nas 24h do meu dia!

A boa notícia é que agora retorno ao trabalho, mas entendi que posso continuar sendo mãe em tempo integral. Pois mães que trabalham fora também podem ser mães presentes, que acompanham de perto a rotina dos filhos!

É uma escolha, naturalmente. Requer sacrifícios, como uma vida social menos intensa, ou pelo menos uma vida pautada por atividades limitadas. O adiamento da pós, mestrado ou doutorado por mais alguns anos, talvez. Mas vale a pena, claro que vale! Para ver de perto o processo de crescimento de um ou muitos filhos.

Como estamos atentas a função que exercemos em nossa empresa ou instituição, não confiando a outros a parte específica que nos cabe, também precisamos ter o cuidado de não terceirizar nossa prole. Nós os trouxemos a terra, a educação deles nos cabe. É nosso sagrado privilégio. Deve ser nossa absoluta prioridade.

Que outros nos ajudem, quando necessário. Mas que a designação divina de MÃES seja sempre nossa, com muita alegria e gratidão no coração. FELIZ DIA DAS MÃES PARA TODAS NÓS!
(Siga o link para ouvir uma canção especial)

Suzy Rhoden

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Infância Roubada II – O Conto


Nasceu pobre de recursos. Mas essa não foi a maior pobreza que o acompanhou na vida: nasceu pobre de afeto, rejeitado pela mulher que o gerou. Do pai nunca teve notícias, nem, crescido, desejou ter dele qualquer informação. Sabia o suficiente: além de rejeitá-lo, o pai intentou também matá-lo.

Dado a outra, para que o criasse, entendeu ainda no berço a maternidade, biológica ou não, como um laço feito de interesses ao invés de amor. Tinha, no lar adotivo, uma referência masculina, um pai de criação. Um homem que, na época de enviá-lo para a escola, julgou mais conveniente ofertar sua mão de obra em alguma fazenda local. Portanto, para o menino, definiu-se a paternidade  como sinônimo de exploração.

Empregou-o a própria professora da escolinha rural, mulher de “nobre” coração.  Tão generosa era que até copiava no caderno do aluno/empregado a lição diária , para que à noite, sozinho, sem qualquer auxílio, sob a luz do lampião, o menino fizesse as tarefas escolares - e tinha a obrigação de fazê-las bem feitas, pois Exigência era o sobrenome da Sra. Generosa!

Quatro horas da manhã, levantava-se o menino de sete anos. De pés descalços, atravessava os campos brancos de geada reunindo o gado. Sentia frio? Não sabia ao certo, não compreendia na prática o verbo sentir, nunca lhe fora dado esse direito. Apenas ia, fazia o que o tinham mandado fazer: buscar o gado e preparar as vacas leiteiras para a ordenha manual. A ordenha também era tarefa sua. Depois devolvia o gado ao campo, separando os bezerros de suas mães, para que fosse preservado o leite a ser ordenhado novamente no final do dia.

E seguia a lista interminável de tarefas a serem cumpridas por aquele menino, desprovido de tudo, até dele mesmo. Cansado, retornava para casa ao final do dia, onde o aguardavam os temas escolares. Tinha de resolvê-los.  Sozinho. Sem ajuda de pai, nem de mãe, nem de professora.

Ao final do mês, recebia seu dinheirinho suado, que era entregue integralmente ao pai  que o empregou. Por sinal, além de ensinar ao filho de criação o valor do trabalho, esse pai também ensinava a evitar o desperdício: jamais deu ao filho uma bala, um pirulito, um chiclete... desde quando criança precisava disso?! O dinheiro era para suprir as despesas da casa e, claro, para o traguinho diário no boteco, pois todo homem trabalhador tem seus direitos adquiridos...

Cresceu o menino. Sem amor, sem abraço, sem pai, sem mãe. Sem leis, sem proteção. Sem infância. Sem adolescência. Sem referência.

Tão logo cresceu, se multiplicou. E hoje ele está por aí, não apenas nos botecos rurais, mas também nos bares das cidades. Bebendo e brigando e matando. E furtando para poder beber mais. E para se drogar, pois com a multiplicação veio também a modernização... E, claro, ofertando suas crianças para fazerem qualquer coisa, em troca de qualquer coisa...

Não foi essa a lição que mais insistentemente lhe ensinaram a vida toda? Que não passava de uma moeda de troca, inútil para uns (pais biológicos), relativamente útil para outros (pais de criação, professora). Lição assimilada é lição passada adiante.

Suzy Rhoden

*Lamentavelmente, esta é uma história inspirada em fatos reais. E esse menino, propositadamente sem nome, é apenas um dentre tantos que circulam por aí, bem ao nosso lado...



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