Um de meus livros preferidos
apresenta a Morte como narradora. A simples alusão ao nome da indesejada
personagem já projeta na mente humana a tradicional imagem cadavérica,
escondida sob capuz negro, carregando uma gadanha às costas. Antipatia gratuita
é o principal sentimento evocado – que passe longe essa senhora!
Não é assim, porém, que a narradora de A Menina que Roubava Livros descreve a
si mesma: “Quer saber a minha verdadeira
aparência? Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo”...
Não pude evitar a estranha
comparação: profissionalmente falando, não importa o quanto gentil e agradável me apresente, serei vista e lembrada como
aquela que revirou feridas e que provocou novas velhas dores. Minha sala é o
último recurso do ser humano, local evitado sob qualquer circunstância.
É mais fácil fingir que o
ferimento cicatrizou, jogar um band-aid por cima dele
e seguir a vida. Por dentro, continua a
corroer a infecção que mina o corpo, a mente e a alma. Eu entro na história
para bagunçar tudo, arranco o band-aid e, num choque absurdo de realidade,
coloco o dedo nas feridas. Fria e imparcial – essa sou eu, vista do outro lado
da mesa. Mas não faço mais do que escancarar uma história já escrita, para que
seu próprio autor a leia – providencio o indesejável espelho!
A Morte de meu livro menciona
a guerra como um insaciável chefe, a repetir sem parar: “apronte logo isso,
apronte logo isso.” A funcionária aumenta o trabalho, faz o que tem que ser
feito, mas o chefe não agradece: pede mais.
Não é assim também em nossos
dias? Não se aplica o mesmo vocábulo para descrever a luta diária da população de
bem por sua sobrevivência neste mundo onde impera a criminalidade? Acordamos
todos os dias e saímos para a guerra, orando para retornarmos vivos para nossos
queridos – e para que eles tenham a bênção de voltar para nós! Está aí meu
chefe insaciável, o multiplicador de feridas na sociedade e, consequentemente,
de seres indefesos dos quais tenho que
arrancar o inútil curativo, como se a mim não coubesse, não fosse conveniente a
compaixão.
Minha mente se volta para Lucy
neste momento. Mulher de seus quase 50 anos. Adentrou minha sala muito segura,
envolta em ataduras, jurando ter dado a si mesma o tratamento adequado. Saiu dali com 9 anos de idade, chorando
compulsivamente enquanto era espancada, desprotegida e abandonada pela mãe. A
mesma mãe de quem Lucy, na vida adulta, veio a cuidar no leito de morte e pela
qual lutou pelos direitos de justiça e dignidade. Escancarei a ferida, coube a
mim mexer nela. Meu chefe insaciável ditou as regras.
Tal qual a Morte retratada em
meu livro, sinto-me por vezes “Abrindo
caminho por tudo aquilo. Na superfície, imperturbável, resoluta. Por baixo,
abatida, desatada, desfeita”. Não é fácil lidar com a dor do outro. Não é
mesmo. Mas é nobre.
É necessário. É imperativo. É
imprescindível. Para que haja esperança de justiça na terra, diante das
barbáries que fazem gemer este planeta: os crimes praticados contra vulneráveis. Para que a justiça tarde, por
vezes – não sou senhora do Tempo – mas definitivamente não falhe!
“Talvez
você argumente que eu faço a ronda em qualquer ano, mas às vezes a raça humana
gosta de acelerar um pouquinho as coisas.” Tempos de guerra, tempos de violência
contra seres que deveriam receber apenas proteção... Tempos de feridas que
custam a cicatrizar! Sinto muito, Lucy.
Suzy
Rhoden
Muito linda tua crônica e há feriadas e mais feridas...Umas abertas outras disfarçadas ,tapadas por um simples curativo e sem que, hajam curado por dentro... Lindo!! beijo,tudo de bom,chica
ResponderExcluirFazia um tempão! Estavas sumidinha!
Oi Chica! Sumidíssima né? rsrsrs Obrigada por vir, comentar e marcar sua presença, que surge com o nascer do sol (já percebi seus horários! rsrsrs). Um beijão.
ExcluirLimerique
ResponderExcluirNão é fortuita, não depende da sorte
Atinge a todos, seja fraco ou forte
Última palavra ela tem
Não refresca ninguém
É a derradeira parada, a morte.
É, Jair... ninguém escapa dela! rsrsrs Abraço.
ExcluirOlá Suzy,
ResponderExcluirJá me deparei diversas vezes com o livro mencionado por você (A Menina que Roubava Livros) e não me animei a comprá-lo. Sua referência a ele despertou meu interesse, principalmente diante das frases citadas.
Você é psicóloga ou psicoterapeuta?
Lançar band-aid sobre as feridas da alma realmente não é solução. É preciso encará-las frente a frente, por mais penoso que seja, para que a libertação ocorra e a vida possa seguir com maior leveza. E, definitivamente, não é um espelho que se deseja encarar. Na maioria das vezes, só se consegue esta desagradável e necessária façanha diante de um profissional habilitado.
Creio que é preciso até preparação emocional para lidar com as dores alheias de maneira profissional e cotidiana, mas acredito que é gratificante ver as pessoas se reerguendo, compreendendo, perdoando e seguindo em frente, libertas de mágoas, rancores e frustrações.
Belíssima a crônica. Você é uma escritora nata.
Beijossssssssssssss.
Não hesite em comprar o livro, Vera! É excelente, de uma leitura que flui e com uma narrativa singular, que me encantou. Abordei em meu texto apenas um viés - o da narradora - pois a história trata mesmo da vida da roubadora de livros, situando a garota num período histórico: a Alemanha nazista!
ExcluirAgradeço o comentário, muito sábio, bem situado no contexto. E me desmancho com seus elogios a minha escrita, obrigada de coração! Beijinhos.
Suzy, também gostei demais do livro citado.
ResponderExcluirImagino o quanto é preciso ser forte e ter uma ótima estrutura psicológica e espiritual para trabalhar com casos como o da Lucy. Você, como sempre, escreveu com maestria sobre isso.
Beijos
Obrigada, Néia!
ExcluirDe fato, o trabalho, quando nos coloca frente a frente com a dor alheia, exige força e estrutura. Pois precisamos auxiliar na cura e não nos deixarmos ferir e abater também. Mas é um lindo trabalho, sempre será gratificante. Muitos beijos!
Realmente não é fácil lidar com a dor do outro, amiga. Seus medos, suas frustrações, seus fracassos. Muitas pessoas tendem a camuflar a realidade como autoproteção – por medo de encará-la ou vergonha. Conduzir o outro a bater de frente com sua realidade, nossa, que tarefa difícil! Eu não saberia fazer isso, principalmente se o ‘outro’ for alguém com o qual não tenho nenhuma intimidade. Por isso, a vc, tiro meu chapéu! Pela sua disposição e empenho de cultivar empatia por aquela pessoa estranha que está a sua frente. Vc mexe e remexe na ferida, mas tbm abre portas que levará a cura. Lindo isso!
ResponderExcluirCrônica sensacional, Suzy! O paralelo que vc traça entre a história do livro e suas próprias experiências, está perfeito! Mais uma vez vc arrasa na escrita!
Beijão.
Sueli, você é puro carinho! De fato, o paralelo nasceu em minha mente ainda enquanto eu lia o livro citado... Pensava em minha árdua tarefa, vista friamente por quem está de fora, mas cheia de sentimentos muito humanos, já que fico a frente com pessoas em seus momentos mais vulneráveis. Me senti muito próxima da descrição da Sra. Morte do livro... rsrsrs A parte doce disso tudo é o que você mencionou: abrir portas para a cura. Como isso é recompensador, Sueli!
ExcluirBjo, bjo, e bom findi pra ti e os teus!!!
Suzy, eu aqui 'dinovo'! rsrs.
ExcluirEsqueci-me de acrescentar que vc, ao chamar a morte de 'Sra. Morte', me fez lembrar do verso de um poema meu onde tbm me refiro à ‘fulana’ como Senhora:
“Medo, não tenho,
Eu tenho é raiva dessa Senhora!
Atrevida!
Intrometida!
Vai me despertar do sonho antes da hora.”
Só por essa coincidência já me deu uma vontade danada de ler esse livro! Feliz aqui que vc não contou o final!! hehehe \o/ \o/ \o/\o/ \o/ \o/ \o/
Agora fui! (antes que transforme seu blog na festa do caqui hahaha)
+bjobjos. Um findi espetacular pra ti, maridão e guris!
Mas é claro que eu não iria contar o final do livro!!! Na verdade, contei apenas o prefácio, pois a história mesmo é outra coisa... rsrsrs
ExcluirEngraçado isso, pois vejo mesmo a Morte como uma senhora em minha imaginação... e, estranho, ela não me assombra. Por isso gostei do livro, por trazer uma outra versão da 'temida' rsrsrs Legal seu poema, que lindo! No livro, sinceramente, nem sei se a Morte é uma senhora... ou se eu que a retratei assim! rsrsrsrs
Amiga, pode fazer a festa do caqui, do caju ou da uva, és sempre bem-vinda!!!
Beijão
Oi, Suzy, gostei muito desse parágrafo:
ResponderExcluir"É mais fácil fingir que o ferimento cicatrizou, jogar um band-aid por cima dele
e seguir a vida. Por dentro, continua a corroer a infecção que mina o corpo, a mente e a alma."
Temos visto que é mais fácil colocar o dedo na ferida dos outros, não? A coragem é desvendar nossas próprias feridas, essas doem! Fazem muita bagunça. Mas com essas feridas é que escolhemos ou não levá-las por uma vida inteira. Acho que a solução é arrancar o band-aid de um fôlego só, talvez doe menos. Vai doer, sem dúvida, mas é como extirpar um furúnculo!
Grande beijo e bom final de semana.
Tais, eu também penso que arrancar o band-aid em alguns casos é necessário: quando a ferida não foi verdadeiramente tratada e segue corroendo por baixo 'dos panos'. Em outras situações, quando a ferida foi tratada, não há porque cutucar nela... o detalhe é que, em algum momento, teremos que olhar de frente para aquela dor e dar alguma atenção a ela, fingir que ela não existe não vai fazer com que desapareça simplesmente. Eis algumas de minhas ideias... bom demais ter aqui o complemento e o brilho das suas! Obrigada por vir, beijos e meu carinho por ti.
ExcluirHá tantas coisas que acontecem conosco que na maioria das vezes deixam cicatrizes imensas e com isso a gente as esconde talvez para não sofrer mais e como forma de amenizar essa dor ou de mascarar essas marcas a gente acha mais fácil olhar para as feridas alheias como forma de esconder as nossas ou até mesmo como uma forma de conformismo, como se disséssemos - eu tenho, mas o outro também tem. Há cicatrizes que são tão profundas que só de olharmos já sentimos uma enorme dor...
ResponderExcluirÉ preciso sabermos equilibrar as tais marcas. Arrancar o curativo e deixar ele tomar um arzinho e saber que nas nossas feridas também pode bater um solzinho...
Malu, tão verdadeiro o que você pontuou: há cicatrizes que são tão profundas que só de olharmos já sentimos uma enorme dor! Por isso respeito muito o ser humano e suas esquisitices, pois nunca sabemos o que há por trás daquela 'cara fechada', não sabemos a profundidade da dor experimentada... O problema é apenas esconder a ferida ao invés de tratá-la, pois em algum dia futuro o ferimento se escancara, tal qual estivera há 40 anos, ou bem pior... Obrigada por vir e deixar tuas palavras, mega beijo!
ExcluirOi Suzy,
ResponderExcluirAinda não li o livro.A minha neta leu,e não comentou, apenas disse que gostou demais e dava pra notar, pois não o largava até que terminou a leitura. Ela tem 13 anos de idade, e agora não
sei se ela realmente entendeu,pelos detalhes que você comentou. Vou ler.
Bem Suzy na dor alheia é que confirmamos à nossa semelhança humana. Nascemos, crescemos e morreremos. O seu sofrimento pela causa alheia, o carinho, a atenção, faz de você um ser humano completo, mesmo cutucando as feridas.A cura começa por dentro.
Um grande abraço e obrigada pelo carinho lá no meus espaço.
Também fiquei grudada no livro, é realmente uma história que prende. E tem um contexto que permeia a história e talvez não seja plenamente compreendido por adolescentes... mas, claro, não devemos subestimá-los, por vezes alcançam muito além do que nossa vista alcança! Leia, você vai gostar e aí teremos mais a comentar sobre essa excelente obra.
ExcluirLindo o que você disse, sobre confirmarmos nossa semelhança humana! Realmente, é essa capacidade de empatia e de solidariedade que nos faz completos.
Retribuo o abraço e o carinho é genuíno! Bjos.