Passei grande parte de minha
infância em típica comunidade interiorana,
cuja vida no povoado se resumia a praça
central, cercada pela igreja, salão paroquial, escola e quadra de esportes. Pais
e filhos mantinham encontro diário no local, em função da rotina escolar. Nos
finais de semana, não era diferente, alterando-se apenas a motivação: eventos religiosos ou esportivos congregavam
a população naquela mesma quadra.
Cresci explorando aquele espaço
como se fosse o quintal de minha casa. Conhecia cada palmo daquele chão,
podendo descrevê-lo em detalhes mesmo após 20 anos de distância... Não havia
mistério, nada ali era novidade. A não ser a assustadora e impenetrável Casa da
Esquina.
Construída há mais de um
século, na esquina que dava acesso a quadra onde tudo acontecia, a Casa ficava
exatamente ao lado da igreja, tendo a frente voltada para a praça e a lateral
para a escola. Impossível chegar ao vilarejo sem dar de cara com o imponente prédio de outrora, então em ruínas. Impossível,
da mesma forma, não ter o olhar assustadoramente atraído para escombros que
convidavam à exploração... E repeliam, na mesma proporção.
Rezava a lenda que a Casa fora
construída por família tradicional, pioneira no vilarejo. Tão magnífica era a
construção, que a vila se desenvolveu ao redor dela, como numa silenciosa
reverência a sua suntuosidade. Residiram felizes três gerações ali, até o
falecimento do patriarca familiar e sua esposa, restando o imóvel como objeto
de desejo dos herdeiros. Nunca houve acordo entre eles. A Casa nunca foi
vendida. Nunca mais foi habitada – ao menos por seres de carne e ossos, segundo
se sabe.
Eu tinha dez anos de idade e um
fascínio sobrenatural pela Casa. Todos tínhamos. Todos fazíamos planos
mirabolantes de incursão na residência, mas poucos tinham de fato coragem para
executá-lo. Ouvia-se que aqueles que adentravam a Casa saíam de lá pálidos e
monossílabos, negando-se a relatar o que viram com os próprios olhos. Falava-se
em um caixão no mezanino. Vestes negras que, apesar do tempo inclemente, não
eram corroídas, como se alguém aparecesse para trajá-las todas as noites de lua
cheia.
Claro que os meninos de minha
sala já tinham entrado na Casa. Não viram caixão nem nada porque, após dois
passos pela sala, recuaram correndo. Gabavam-se, ainda assim, de sua ousadia.
Decretamos que nós, meninas, não daríamos a eles o título de valentia da 5ª
Série (atual 5º Ano) tão fácil: iríamos pelo menos até a sala de jantar.
Escolhemos uma bela manhã de
domingo, depois da missa. Queríamos plateia em grande estilo, devidamente
vestida para a ocasião. O ideal mesmo seria à noite, mas que pai ou mãe
liberaria a filha de 10 anos para visita noturna aos fantasmas?! Não fez
diferença alguma, lá dentro há tempos as sombras haviam se instalado e a luz solar
era expulsa sem cerimônia. A escuridão nos recebeu tão logo colocamos o pé para dentro.
Lembro do assoalho rangendo a
cada passo, e das paredes imensas, descascadas, projetando sobre nós pedaços
esfarelados de cimento, enquanto andávamos. O teto, ameaçador, emitia mensagens
iminentes de desabamento, como se isso fosse suficiente
para nos expulsar. Avançamos corajosamente, adentramos os cômodos, assustando
os morcegos ali residentes.
Embora há muito não habitada,
deixada para que ruísse, a Casa não abdicava de sua imponência. Ostentava ares
de império, quase como se dissesse que, apesar da decadência, monopolizava
todos os olhares e era, sim, alvo de cobiça. Os cômodos eram amplos,
arrogantes, davam idéia de tudo que se viveu lá dentro em outra época, e a
sensação era de que, se não andássemos com cuidado, de repente tropeçaríamos
nos pés de seus nobres proprietários.
Finalmente, a visão tão
esperada do mezanino, e a decisão silenciosa acerca de subir os degraus da
mansão em ruínas, para ter acesso aos quartos e a sacada frontal. Sermos vistas
na sacada seria a glória – inventaríamos a selfie
há 20 anos atrás, certeza!
Avançamos pelos degraus, um
tanto relutantes, sem saber ao certo o que encontraríamos... O caixão? As
vestes negras? A escuridão e as teias de aranha, dispostas por toda parte, não
nos deixavam ter visão clara do que havia em frente. Mas o som, vindo na forma
de estalos regulares da parte superior da casa, tão logo começamos a escalada,
foi algo inegável. Ouvimos e congelamos. Insistimos, e então veio a risada,
algo entre o irônico e o macabro. Não houve assentimento
silencioso dessa vez, a debandada foi aos gritos, rumo à porta de entrada. Uma
lástima, pois eu já alcançava o último degrau naquele instante, liderando a
trupe de meninas.
Chegamos esbaforidas ao lado de
fora, minha roupa de domingo coberta de teias. Em minutos, os meninos nos
cercavam, rindo e apresentando as pedras com as quais produziram ruídos no telhado e no andar superior da Casa.
De um deles, veio a gargalhada, nem tão irônica, nem tão macabra quanto nos
pareceu lá dentro da casa. Só não perdemos de vez a credibilidade na turma
porque, afinal, andamos bem mais do que dois passos lá dentro... Assim, o caso
foi abafado.
Por que não organizamos nova
incursão, já que os meninos assumiram a autoria dos sons reproduzidos? Porque
ninguém, em momento algum, me explicou como se materializou, em vestes
totalmente pretas, o ser que vi no mezanino da Casa. Só por isso. Mas quando souber de
qual colega foi a graça, prometo que volto lá.
Suzy Rhoden
Obs.: A imagem reproduzida é meramente ilustrativa e não corresponde à verdadeira Casa da Esquina de minha infância.
Suzy,que legal e essas casas ou parecidas fazem parte do imaginário infantil!Adorei bjs praianos,chica
ResponderExcluirChica, quem não teve uma casa dessas na infância para explorar em suas fantasias, não sabe o que é terror de verdade! rsrsrs
ResponderExcluirAcabo de voltar da praia, sempre bom demais! Aproveita aí, beijos!
Adorei adentrar a tua casa da esquina Suzy! E compartilhar teias de aranha, a invenção da selfie!
ResponderExcluirBeijo
Obrigada pela coragem de vir comigo, Ana! rsrsrs
ExcluirSempre bom te receber aqui... beijos!
Saudades de vc lá e daqui!
ResponderExcluirSaudades sempre da infância que tive e pesar pela que vivem hoje em dia a maioria.
Quintal ou praça central, cercada por uma igreja,, salão paroquial, escola e quadra de esporte hj é como as casas da esquina abandonadas e curiosidades poucas há dos pasantes.
Adorei te ler e lembrar de histórias minhas.
Beijos querida!
Saudades também, Tina! Vou lá, sim, só preciso me reorganizar... faz tempo que estou nessa né... desculpa! Como vês, quando sumo de lá, sumo daqui também...
ExcluirMas, enfim, sempre bom relembrar as velhas histórias que nos fizeram exatamente assim como somos!
Beijos
Ui! A leitura foi de dar arrepios na espinha!
ResponderExcluirAcredita que nunca senti medo ao avistar uma casa desse tipo? Apenas tristeza, ruínas me causam essa sensação.
Suzy, parabéns pela narrativa, uma delícia de ler.
Beijos
Néia, que interessante seu olhar para as casas em ruína! Sabe, elas são tão singulares pra mim, cada uma desperta uma sensação... mas esta do texto, ah, era pura magia, convite irrecusável para a aventura! rsrsrs
ExcluirObrigada pelo carinho, beijooo!
Que delícia de leitura, apesar dos arrepios, muito bem narrada, fiquei presa e voltei a ser criança na minha imaginação. Mas acredito que mesmo agora depois de adulta se me deparasse com alguma casa em ruína a sensação seria a mesma, e atração por lugares assim é um fato. A curiosidade em desvendar os mistérios, ou a vontade de experimentar sensações diferentes e provar nossa coragem, não parecem ter ficado lá na infância, acredito que ainda é igual. Que bom Susy que voltou a postar. Um grande abraço.
ResponderExcluirQuerida amiga
ResponderExcluirDas muitas lembranças
que trazemos em nós,
a da casa que nos viu crescer
é inesquecível...
Trazem a alegria que tínhamos
em sua maior pureza...
Que ainda haja estrelas em seu coração,
é o que deseja minha vida para a tua.