sábado, 7 de julho de 2012

Violência Doméstica: quando recomeçar é um passo necessário!


O Dia da Formatura

Das Dores, frente ao espelho, viu-se realmente bela pela primeira vez. O terno preto, discreto como pedia a ocasião, caía-lhe perfeitamente bem. Tinha os cabelos presos em trança embutida lateral, penteado que aprovou com um sorriso. Acessórios cuidadosamente escolhidos completavam o elegante visual. Estava linda, não havia dúvidas! Sentia-se linda, o que de fato importava.

Com o dedo indicador, roçou a pele na altura dos lábios, onde encontrou, encoberta pela maquiagem, uma cicatriz. Não podia vê-la, mas sabia que estava ali. Suplantada, vencida, sobrepujada. Era um símbolo externo daquilo que  lhe ia por dentro: tal qual a maquiagem em relação às imperfeições da pele, sentia a alegria curar as feridas da alma. A felicidade era seu trunfo, sua mais solene vitória!

Mas faltava algo, um último confronto. Não diziam que os piores medos são dissipados após o enfrentamento? Ali estava ela, corajosamente disposta a enfrentar-se no espelho. Precisava daquele derradeiro momento.

Em questão de segundos, seus olhos vivos e radiantes repousaram sobre uma pobre e acuada criatura: chamava-se Maria das Dores, moça humilde do interior. Casara-se cedo, com o primeiro namorado, um homem mais velho, hábil com as palavras. Logo viu-se grávida e, portanto, impedida de prosseguir com os estudos. Uma pena, diziam as professoras, pois sempre fora muito inteligente, uma espécie de mente inquieta. Que se aquietou, contudo, quando o marido começou a proferir aos brados quem é que mandava em casa. Maria das Dores anulou-se, passou a viver em função dele. 

Não demorou muito para começarem as agressões. Dependente do marido de muitas maneiras, Das Dores viveu uma fase de negação. Dizia pra si mesma que ele havia perdido o controle por um momento, mas que aquilo não voltaria a acontecer; que era um homem bom, não teria agido daquela maneira se não estivesse sob a influência do álcool. Os abusos continuavam, contudo, e pelos motivos mais banais, com ou sem bebida. Das Dores não contou pra ninguém, sentia vergonha. Optou por uma vida cada vez mais reclusa, afastou-se até mesmo dos familiares e amigos próximos para não ter de explicar a origem de  hematomas que surgiam misteriosamente em seu corpo.

Por que agia daquela maneira? Não sabia. Não naquela época. Mas agora entendia que não se pode esperar conduta diversa de uma mulher fragilizada, em situação de completa  vulnerabilidade.  Sentia-se só e realmente não via a quem recorrer. Como falar de algo tão íntimo pra alguém? Chamar a polícia significaria a rua inteira diante de sua porta... Como olhar para os vizinhos depois do espetáculo? Vergonha. E medo também. Medo do futuro incerto, com suas crianças ainda pequenas... Se denunciasse o companheiro, teria obrigatoriamente que se separar dele. Para onde ir? Como sustentar seus 2 filhos? Aos 25 anos, nada tinha que lhe pertencesse, nenhum ofício que lhe garantisse o pão de cada dia, nem qualquer perspectiva profissional. Estava presa, definitivamente atrelada ao seu agressor.

Os dias passavam e a situação da pobre Das Dores só piorava. Tratada como objeto, a mulher vivia para satisfazer as vontades de seu possuidor. Ao invés de um marido, tinha um dono, a quem devia subserviência. Não ousava erguer a voz para ele, pois no fundo se sentia culpada e responsável por tudo: não se casara por amor e sim para fugir de um lar onde a mãe vivia em sistema de escravidão enquanto o pai gozava de plenos poderes, inclusive o de maltratar a esposa quando lhe parecesse conveniente – de preferência, humilhá-la na frente das visitas. Das Dores jurava que sua história seria diferente, que havia escolhido um bom homem. Em menos de 1 ano, porém, quando as máscaras caíram, a pobre mulher viu que os personagens haviam mudado, mas o enredo era exatamente o mesmo e, o que era pior, ela não via qualquer possibilidade de um “final feliz”.  Aceitou a amarga sina, resignou-se dizendo pra si mesma que seu destino fora traçado no dia em que a mãe, prevendo lágrimas, declarou perante o escrivão: Maria das Dores Silveira. E assim foi.

Mas houve um momento em que todos os limites foram ultrapassados e Das Dores viu-se obrigada a agir! Fora atingida na altura dos lábios, por objeto arremessado por seu companheiro durante  ataque violento. O sangue jorrou abundante, manchando a parede, e ela em choque começou a gritar. Os vizinhos acudiram, chamaram a polícia, e os policiais levaram-na ao hospital. Onde estava o valentão naquele momento crucial? Ficara ali para cantar de galo e justificar sua atitude para a polícia? De modo algum, fugiu pelos fundos de casa, saltando muros e rastejando como rato pelas propriedades alheias. Sabia que seu ato era, sob qualquer circunstância, injustificável, e que seu destino seria a prisão caso fosse encontrado em flagrante delito. Fugiu, experimentando por sua vez o medo que por anos  incutiu na mente frágil e inocente de Das Dores.

Conduzida a delegacia, Das Dores registrou Boletim de Ocorrência, através do qual solicitou medidas protetivas e demonstrou seu desejo de representar contra o agressor. Não sentia o chão debaixo dos pés, seu mundo havia desabado. Ao mesmo tempo em que sentia o alívio –como alguém mantido por anos em cárcere privado sente ao reencontrar a liberdade – experimentava a incerteza, a confusão de sentimentos, a absoluta falta de perspectiva para o futuro. Sentia-se uma fracassada, uma incompetente, que não soube escolher um companheiro digno de seu amor, nem um pai decente para seus filhos. Estava machucada por fora e destruída por dentro, duvidava que para ela pudesse existir um amanhã.

A dor extrema por vezes é justamente o impulso necessário para o recomeço. Das Dores pensou em suas crianças e viu ali um ponto de partida, ao invés do ponto final. Por eles, ela renasceria; encontraria forças para redirecionar sua vida. Pensou também nas outras mulheres, vítimas silenciosas das mesmas agressões que por tanto tempo ela sofreu calada e desejou fazer algo... Não percebeu na época, mas foi ali, naquele exato instante, que ela tomou as rédeas da própria vida e começou a moldar seu destino do jeito que ele deveria ser.

Nem tudo são flores para uma mulher que rompe o ciclo de violência doméstica. Para falar a verdade, a primeira etapa é marcada apenas por espinhos. Há a necessidade de reconstrução em todos os setores da vida. Das Dores precisou de coragem, muita coragem! Pois, passado o primeiro momento, ressurgiu o marido tentando reconciliação. Ofereceu todos os motivos para o retorno, fez promessas, implorou por perdão. Como não obteve êxito, mudou a estratégia: passou a ameaçar Das Dores, impôs a ela implacável perseguição.

A princípio, ela acreditou que com a denúncia todos os seus problemas estariam resolvidos. Não funciona assim. Aprendeu com a experiência que, apesar da boa vontade de maioria dos servidores, os recursos que o Estado disponibiliza para a mulher nessas condições  são limitados. E muito dependia dela, de sua atitude. Foi inflexível, não se deixou levar pelas lisonjas do companheiro nem pelas ameaças que vieram na sequência, mas precisou redobrar os cuidados. Enfrentou o julgamento de pessoas próximas que, na hora em que mais precisou, simplesmente desapareceram. Uns porque não queriam se meter, outros porque, carregados de machismo, diziam aos quatro ventos: alguma ela deve ter aprontado! Poucos de fato entendem que, perante a lei, não há justificativa aceitável para a agressão a mulher: será sempre um crime e uma covardia.

Avaliando a sociedade machista na qual foi criada, Das Dores entendeu porque muitas mulheres silenciam como ela silenciou por muitos anos. Medo e vergonha são os principais fatores. Dependência emocional também, pois o agressor utiliza-se  da intimidação e da manipulação. Algumas mulheres dão os primeiros passos, mas perdem sua força diante da ineficiência do Estado e do despreparo de alguns servidores, e acabam voltando para os braços de seu algoz. A mente inquieta de Das Dores, livre do cárcere, voltou a questionar a sociedade e não se conformou com o que viu: retomou os estudos, formou-se em Direito.

Mas sua missão  não estava cumprida: não lhe bastava advogar em favor de mulheres em condição de extrema vulnerabilidade, queria ser a responsável pela elucidação dos fatos, trazê-los à tona, para levá-los ao juiz  embasados em provas concretas contra os agressores. Queria poder dizer, através de ação diária, que carregava a causa das mulheres vítimas, sem dar-se ao luxo de julgar os casos, mas dando voz a todas elas para que tivessem a oportunidade de quebrar o ciclo de violência em seus lares. Queria também servir de exemplo para aquelas que, fragilizadas, se sentiam incapazes de olhar para o futuro e sonhar; queria mostrar que todas têm seu valor e que podem, a qualquer tempo, tomar as rédeas da própria vida e realmente viver, trabalhar, estudar, vencer!

Das Dores, frente ao espelho, viu-se como de fato sempre foi: uma mulher guerreira, valente, disposta a enfrentar as agruras da vida com a cabeça erguida, consciente de seu valor. A mãe não estava errada, as dores fariam parte de sua existência... mas apenas como um lembrete, para que ela nunca se acomodasse, e então aprendesse que amor-próprio e felicidade não caem do céu: são conquistas a serem feitas diariamente!

Com olhar firme, despediu-se de Maria das Dores através do espelho. Seu nome agora era Maria Vitória, Delegada de Polícia, lotada na Delegacia de Atendimento à Mulher. Virou as costas e andou com passos resolutos na direção da porta. Havia muito a comemorar naquela noite de formatura.

Minha homenagem à Delegada Nadine Anflor, titular da Delegacia de Atendimento à Mulher de Porto Alegre e coordenadora da Coordenadoria das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher no RS, na noite em que recebeu o prêmio "Mulheres que Fazem a Diferença".
*A história aqui relatada nada tem a ver com a história pessoal da Delegada Nadine.


7 comentários:

  1. Suzy, fiz um, comentário enorme e perdi.

    Talvez até tivesse falado demais e por isso não entrou.

    Agora, digo que tua crônica foi linda, merece todos aplausos e digo às M.das Dores da vida, que não aguentem.

    Denunciem, façam os BOs da vida e sigam, sem serem capachos!!

    beijos,tudo de bom,chica

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  2. Suzy, essa sua crônica é um alerta, uma denúncia e um pedido de socorro. Tudo vem ao mesmo tempo para essas mulheres que sofrem caladas por medo da represália e pela vergonha de serem e parecerem tão pisoteadas, tão capachos. Grande parte já denunciam seus agressores, mas ainda tem muita coisa pela frente. Como você narrou, a grande maioria não tem para onde ir e como sustentar os filhos. E isso se torna a base de um problema de difícil solução: mexer na base, na educação, na oportunidade de trabalho. Alguém que possa sustentar a si e seus filhos (parte) não passará por certas coisas. Quando nada têm, quando essas mulheres não veem solução, o orgulho como ser humano, como mulher, nem existe. A dependência é tanta que aceitam os maus tratos num silêncio de dar dó. E em pleno século 21, quando o homem já tá careca de ir a lua e voltar, isso ainda está difícil de resolver... Uma enormidade de mulheres sofrem agressão doméstica por minuto!
    Você disse tanto e de uma forma tão bem colocada e real que não se tem nada a comentar.
    É um texto para rodar na Internet... Mas com o devido crédito.
    PARABÉNS!

    Beijo grande
    Tais

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  3. Oi Suzy, enquanto eu lia seu texto fui lembrando de alguns casos parecidos ocorridos na minha pequena cidade. A violência contra a mulher não escolhe faixa etária, econômica e nem grau de escolaridade, infelizmente, ela é democrática!
    Você colocou, maravilhosamente, bem a situação da mulher acuada pelo medo e incerteza, nem sempre ela tem forças para virar o jogo e assim se entrega, infinitamente, aos maus tratos.
    Que dias melhores venham e as mulheres sejam mais respeitadas dentro da própria casa.
    Nem preciso dizer que seu texto é um primor Suzy, é possível até visualizar cada cena vivida pela personagem.

    Uma linda semana minha querida amiga.

    Beijos

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  4. Oi Suzy :)
    Essas histórias de violência doméstica,acontecem mais do que a gente imagina;e atinge todas as classes sociais.
    Mas a vergonha em denunciar o agressor,só traz pioras.
    Até a pessoa agredida se dar conta,de que não deve ficar calada perante situações como essa,certamente já sofreu por muito tempo.
    Mas feliz foi a Maria das Dores,que lutou,venceu,e deu a volta por cima.
    Bjs!

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  5. Suzy, mil vezes parabéns por abordar um tema tão essencial!

    É triste pensar que em pleno século 21 a violência doméstica contra a mulher está por toda parte, em todas as camadas sociais, nos "lares bem estruturados" dos nossos vizinhos... Muitas vezes nem dá pra denunciar, pois não vemos, se quer imaginamos, tudo é muito bem camuflado pela covardia do homem e pelo medo e vergonha da mulher. Lamentável.

    Mas vejo que esse triste quadro está mudando aos poucos, pelo menos isso nesse país de injustiças. Tomara que essas novas leis sejam aplicadas a todas as classes, sem distinção. Temo que aqueles mais afortunados se safem dela, como acontece com outros crimes, na política, etc.

    Maravilha amiga, uma matéria de utilidade pública, escrita de um jeito muito especial!

    Um bjo enorme!

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  6. http://www.youtube.com/watch?v=mAVQcG-US-8&feature=g-upl

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