domingo, 3 de julho de 2011

Bolachinhas para Denise



Lembro-me com exatidão de meu primeiro ato consciente de amor. Alguns preferem chamar caridade, conforme ensinam as sagradas escrituras, mas a nomenclatura mais adequada não importa tanto assim neste texto, quero mesmo é falar do sentimento. E ele é pleno, nobre e grande. Inesquecível.

Aconteceu numa manhã, num quarto de hospital público onde, em minha infância, eu estava internada com pneumonia. Não lembro exatamente de minha idade na ocasião, mas sei que a menina da cama ao lado tinha quatro anos e se chamava Denise. Era pouco menor do que eu. Não havíamos tido qualquer interação até aquele momento, ambas ocupadas demais com seus “dodóis”. Mas então acordei de minha sonequinha exatamente nesse ponto da conversação entre mãe e filha: “mãe, eu quero aquela bolachinha”. “Filha, aquela bolacha é da menininha, não é nossa”. Denise, faminta como todas as crianças diante de guloseimas, insistia. Mantive meus olhos fechados durante algum tempo, compreendendo logo que minha mãe não estava presente para responder à solicitação de Denise. Cabia a mim, portanto, agir. Num impulso, abri meus olhos e solenemente declarei: “A senhora pode pegar algumas bolachinhas para sua filha. Faça isso, por favor”.

A mulher avançou, agradecida por eu tê-la salvo das súplicas insistentes de sua filhinha, e pegou algumas bolachas, enquanto os olhos de Denise brilhavam e seu rostinho estampava um sorriso pleno de felicidade. Eram apenas bolachas, e era tão fácil compartilhá-las! Eu já havia feito isso muitas vezes, mas sempre orientada por minha mãe, não por iniciativa própria. Para que o momento fosse perfeito, sabia que devia mantê-lo em segredo, e assim o fiz até esta oportunidade de compartilhar as impressões que algumas bolachas e uma menininha feliz deixaram em minha vida.

Crescemos e, de repente, compartilhar um pacote de biscoitos já não é mais tarefa tão simples, tão fácil. Analisamos um milhão de coisas primeiro: o candidato às nossas bolachas é merecedor delas? Fará devido uso ou desperdiçará o que lhe destinarmos? Por que não trabalhou para comprar as suas, tal como nós fizemos? E nesse ponto, avançamos da análise para o julgamento: “certamente não foi sábio, foi preguiçoso ou inconseqüente. Vive agora os resultados de sua má escolha, sofre os efeitos do pecado, recebe a punição”. Com esses pensamentos, nos sentimos justificados em negar a doação. E se, por acaso, ainda assim o fazemos, é para publicar das mais diversas maneiras a nossa boa ação e recebermos louvor pela grandeza de nosso coração. São apenas bolachas, mas na vida adulta como é difícil compartilhá-las!

Não se trata de menosprezar a cautela tão recomendada em tempos atuais, cheios da maldade dos homens. Zelo será sempre necessário, também o cuidado, a precaução. Mas serão esses argumentos válidos para permitir que o amor esfrie em nosso coração? Existem, todos os dias, oportunidades inúmeras de fazermos o bem sem colocar em risco nossa integridade física, e ainda assim não o fazemos. Pensamos demais em nós mesmos, e em nossas necessidades supervalorizadas, raramente sobram bolachinhas para serem compartilhadas. O apetite do homem moderno aumentou, sua fome de posses parece não ser nunca saciada. E as Denises de nossos caminhos simplesmente passam despercebidas ou, mais comumente, completamente ignoradas.

Felizmente, ainda existem adultos com coração de criança. Conheci uma pessoa incrível assim, durante a faculdade. Com grande sacrifício, alugava um quarto numa pensão, para poder permanecer na cidade e levar adiante seus estudos. Muitas vezes, devido aos gastos com sua educação, tinha apenas um pacote de bolachas como desjejum, que ia saboreando enquanto se locomovia para a universidade. Tive o prazer de acompanhá-la numa manhã assim, mas qual não foi minha surpresa quando, ao passarmos por uma praça, ela se dirigiu a um homem que ali dormia, ao relento, e bem ao seu lado deixou exatamente metade de seu único lanche! Não falamos muito sobre o assunto, mas eu soube que esse não foi um ato isolado. Diversas manhãs, quando por ali passava, ela deixava não somente algumas, mas metade de seu pacote de bolachas, num ato silencioso de amor sem fim. Salvou o mundo da miséria e da fome? Não, mas naquelas manhãs uma Denise faminta teve biscoitos para comer e deve ter ficado muito feliz por isso. Salvou a si mesma? Sim, com toda certeza. Salvou seu coração do egoísmo e da frieza que caracteriza esta época em que vivemos. Experimentou o doce e indescritível sentimento que só quem alimenta, silenciosamente, uma Denise consegue ter da forma mais plena: o amor cristão.

                                                                                      Suzy Rhoden
Gravataí, 02 de julho de 2011

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